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José Filipe Costa: Tenho muita dificuldade em perceber o alcance de um filme

José Filipe Costa, cineasta que realizou filmes como “Linha Vermelha”, lançou a curta-metragem “O Caso J”, inspirada em casos de violência policial no Rio de Janeiro. Seguir-se-á o documentário “Revolução na Alcova”, que apresenta um lado menos conhecido do PREC.

Bruno Simão
07 de Julho de 2017 às 14:00
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A morte pode ser uma montagem. E um tribunal é um teatro. É sobre isso que fala "O Caso J", uma curta-metragem de José Filipe Costa, que se inspira em casos de violência policial no Rio de Janeiro. O cineasta português, que realizou filmes como "Linha Vermelha", um olhar sobre a "Torre Bela" de Thomas Harlan, parece querer desconstruir ou, pelo menos, fazer releituras de cenários de "mise-en-scène" que criam as suas próprias realidades. É isso que acontece nesta nova curta-metragem, que esteve no IndieLisboa e vai passar no ciclo Topografias Imaginárias, inserido no programa "Capital Ibero-americana de Cultura, Lisboa 2017". Outros tabus vão ser quebrados no próximo documentário de José Filipe Costa. Chama-se "Revolução na Alcova" e apresenta um lado ainda menos conhecido do PREC, que foi um período de alta intensidade vivencial, como diz o cineasta. 


Mais do que a violência policial no Rio de Janeiro, interessou-me mostrar no filme ("O Caso J") todo o dispositivo teatral que existe muitas vezes em cenários de crime. Fiquei fascinado por esse lado de "mise-en-scène" em que os polícias usam um vocabulário riquíssimo, com expressões como "kit bandido", "kit flagrante" ou "fazer a mãozinha", que é colocar uma arma na mão do morto. Existem relatórios da Amnistia Internacional e da Human Rights Watch sobre os chamados "autos de resistência", ou seja, sobre a ideia de que alguém resistiu a ordens policiais e foi morto na decorrência da oposição. Quando se investiga melhor, conclui-se que muitas dessas pessoas já estavam dominadas e que os polícias tinham colocado provas incriminadoras junto dos corpos. Há um verdadeiro dispositivo teatral em torno do morto. E tudo isto é tacitamente aceite pelo próprio sistema judicial e pela sociedade. É como se as estruturas ficcionais e as ficções que conhecemos estivessem a impregnar aquilo a que nós chamamos de realidade.


Estou a preparar um documentário, chamado "Revolução na Alcova", sobre o lado mais relacional do PREC, um período de alta intensidade vivencial


Dei aulas de cinema na universidade estadual do Rio de Janeiro, com uma bolsa de professor visitante e, para tal, tive de apresentar um projecto de investigação. A minha ideia inicial era filmar no Instituto de Medicina Legal do Rio de Janeiro, um bocadinho na sequência de um trabalho que fiz na morgue de Lisboa em 2006 para uma iniciativa da Gulbenkian chamada Fórum Imigração. Na altura, fiz um vídeo sobre a dificuldade em identificar os cadáveres de imigrantes de leste. Muitos deles estavam ilegais e a sua não identificação na morte era uma espécie de prolongamento da sua condição em vida.

Percebi que os institutos de medicina legal são uma espécie de termómetro de uma cidade. E foi com a ideia de fazer um trabalho sobre este tema que parti para o Rio de Janeiro. Na altura, em 2013, a violência policial era também objecto de protestos no Brasil e eu conheci uma antropóloga que estava a fazer uma tese de mestrado no Instituto Médico Legal. Ela disse-se que muitas das pessoas que davam entrada no instituto eram jovens negros que vinham de determinados meios. Depois falou-me das mortes por "autos de resistência" e foi a partir daí que comecei a construir uma ficção com base em pesquisas na imprensa, nos relatórios e no tribunal.

As questões relacionadas com os "autos de resistência" estão bem identificadas, mas existe um grande entrave às suas conclusões, e isso tem que ver com posturas políticas em relação à forma como se vê o mundo, ou seja, há uma grande responsabilização do bandido, como se a conduta fosse motivada pela sua própria natureza, quando, na verdade, estes estudos identificam determinados comportamentos como sendo parte de qualquer coisa mais sistémica. Dizer que os bandidos são o que são por causa da sua natureza conduz a políticas de eliminação sistemática e a lógicas de guerra extremadas e maniqueístas. Existe aqui um lado de desespero por causa da questão da insegurança no Brasil. É muito fácil, quando estamos no limite de sermos atacados na rua, deixarmo-nos levar por uma paranóia social que quer a eliminação absoluta.

Tenho muita dificuldade em perceber o alcance de um filme e o que é que ele pode fazer. Tento que os meus filmes não sejam uma desconstrução pelo efeito da desconstrução em si mas pelo reconhecimento de coisas que animam a nossa vida e que são mais profundas. No caso do "Linha Vermelha" - um olhar sobre a "Torre Bela", de Thomas Harlan - apercebi-me que os indivíduos retratados eram 'actores' do filme e eram actores também de uma revolução e, por vezes, quando vivemos esse tipo de experiências, não sabemos muito bem até que ponto é que estamos a fazer teatro para nós próprios e para os outros, para nos reconhecermos, a nós e aos outros. Quando as pessoas se põem a falar à frente da câmara e a gritar palavras de ordem, muitas delas nunca o tinham feito e era uma maneira de acreditarem que o podiam fazer, que tinham esse poder. Acho que foi um despertar político para muita gente e a câmara ajudou. Claro, com o tempo, veio o desencanto.

Apesar de o filme ser muito observacional, na prática, sempre que há um jornalista ou um cineasta atrás da câmara, isso torna-se parte da natureza daquela experiência, não é qualquer coisa que está fora. Acho é que os jornalistas e os realizadores, muitas vezes, querem fazer crer que não é assim. Um senhor que também participou nessa experiência da cooperativa dizia-me, há pouco tempo, que a ocupação da Herdade da Torre Bela foi muito empolada e enfatizada porque existe o filme do Thomas Harlan...


É muito fácil, quando estamos no limite de sermos atacados na rua, deixarmo-nos levar por uma paranóia social que quer a eliminação absoluta do 'bandido'.


Com o "Linha Vermelha", também quis relativizar determinadas situações pois muitas daquelas pessoas viveram com um estigma forte. No filme "Torre Bela", vemos gente a mexer nas roupas do duque, algo que gerou e gera indignação, e eu quis colocar as coisas no contexto, tudo aquilo corresponde a um determinado momento na vida daquela cooperativa e da época do país.

Há muitas questões que continuam por desenterrar, há muitas releituras a fazer sobre aquilo que se passou. Estou a fazer um documentário chamado "Revolução na Alcova", que é sobre o lado mais relacional do PREC, um período dramaticamente muito interessante, de alta intensidade vivencial. O filme parte de histórias pessoais de estrangeiros e de portugueses que viveram esta época e que falam sobre temas como o sexo e a conjugalidade.

Quando decidi fazer filmes, a ideia de ser cineasta parecia-me muito remota, eu não conhecia ninguém do meio nem sabia muito bem como é que se trabalhava na área. Eu não era nada cinéfilo, não ia ao cinema e a pouca cultura cinematográfica que tinha vinha dos filmes que via na RTP. Decidi estudar Ciências da Comunicação na Universidade Nova pensando em jornalismo, algo que me parecia mais palpável. Na faculdade, tive contacto com filmes, com a teoria do cinema, depois fiz um estágio de jornalismo televisivo, trabalhei numa produtora de televisão, dei aulas de comunicação no secundário, escrevi o livro "O cinema ao poder: a revolução do 25 de Abril e as políticas de cinema entre 1974-76" e fui fazendo investigação.

Hoje faço parte da Associação Portuguesa de Realizadores. Estamos a reivindicar um papel mais activo do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), queremos que seja apenas esta entidade a escolher os júris para concursos de financiamento, e não a SECA (Secção Especializada do Cinema e Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura). Do ponto de vista democrático, poderia ser uma coisa interessante se a sua estrutura não gerasse um conflito de interesses, uma vez que nela têm assento as operadoras de televisão, que também têm outras áreas de negócio e, por tal, podem condicionar o resultado dos concursos. Se, colectivamente, o país dá espaço de difusão às operadoras, também é bom que as operadoras contribuam culturalmente para outro tipo de formatos que não passem apenas por lógicas comerciais.

Apesar de tudo, o cinema português tem estado bem representado, ecoa muito no exterior e, em Portugal, existe algo muito interessante, que é uma distribuição mais microscópica dos filmes. O "Linha Vermelha" esteve em quase 60 lugares, como cineclubes, universidades e pequenos auditórios, e o público que vai a estes espaços tem uma intensidade de presença que, se calhar, não existe nos centros comerciais. 


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