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Jonathan Franzen: A receita para um grande romance americano

É possível escrever “o grande romance americano”? Para Jonathan Franzen, a multiplicidade de identidades da América dificulta a tarefa. O autor de “Correcções” e “Purity” desdenha da etiqueta de “grande romancista americano” que a Time lhe atribuiu. Mas veio a Lisboa deixar a sua receita para ser um grande escritor.

Fundação Luso-Americana/Rui Ochoa
13 de Outubro de 2017 às 12:00
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"Farei tudo para poder voltar a escrever um romance." Jonathan Franzen formulou este quase desejo perto do final de uma sessão de pouco mais de uma hora que foi o pretexto para o escritor norte-americano regressar a Lisboa, 30 anos depois da primeira visita. Uma conversa em que foi dando pistas sobre a sua receita para escrever um "grande romance americano".

Foi de literatura que um dos escritores norte-americanos mais crítico de Donald Trump quis falar. O Presidente dos Estados Unidos mereceu apenas uma brevíssima referência a Franzen, que se mostrou preocupado com o facto de o homem que ocupa a Casa Branca - "assustador de muitas formas" - estar na posse dos códigos nucleares do país e de a sua política poder causar sérios danos ao ambiente. Falou de Trump a contragosto. Foi a literatura que o trouxe a Lisboa.


Não se pode falar de "literatura americana", mas de "literaturas americanas". "A América tem muitas, muitas identidades."


O autor de "Correcções", que a revista Time apelidou de "o grande romancista americano", não é especialmente fã da expressão muitas vezes usada para o descrever. "É uma frase comercial", desdenha. E mostra como é difícil, senão impossível, escrever "o" grande romance sobre a América. "A América ainda é um grande país sem uma capital. Há Nova Iorque, há Washington... Não há um único local para contar a história do país." É por isso que, na sua opinião, não se pode falar de "literatura americana", mas de "literaturas americanas". Há a literatura da identidade sulista, da identidade negra, da imigração, do que é ser judeu na América. "A América tem muitas, muitas identidades."

"A multiplicidade americana" é o problema para quem quer escrever o grande romance americano. "Um romance tem de ser sobre uma determinada realidade. Não pode abarcar tudo, se não é o descontrolo", avisa. "O Grande Gatsby" poderia ser essa obra de referência, chega a conceder Franzen. "Mas neste romance onde está o Sul, onde estão os americanos nativos, onde está o Oeste, os negros? 'O Grande Gatsby' não consegue responder."

Sem acantonar a sua obra nessa classificação, o finalista do Pulitzer assume-se como branco, heterossexual, alguém que teve a sorte de ter bons pais e irmãos. Mas que, ainda assim, reconhece que "era um homem enraivecido", dando razão ao "amigo" Philip Weinstein, que descreveu a sua obra como "uma comédia da raiva".

A raiva pode já não dominar Franzen, mas a irritabilidade e a ironia são dois dos ingredientes da sua obra. É o próprio que o assume.

Foi uma certa irritação e uma dose de humor que o levaram a escolher a palavra "Correcções" para título de um dos seus romances. A mesma expressão que os profissionais dos mercados financeiros citam para "esconder" "crashes" bolsistas e que os Estados Unidos dão ao seu sistema prisional. E que o escritor usa para falar dos ataques de 11 de Setembro de 2001, que ocorreram seis dias depois da publicação da sua primeira obra de êxito mundial. "Foi uma loucura", recorda.

Fórmula idêntica trouxe a inspiração para chegar aos títulos dos dois romances seguintes. "Liberdade", o pretexto de George W. Bush para invadir o Iraque, em 2003. "Purity", numa referência à ambição de "purificar o mundo" que é bandeira de grupos tão diferentes como os jihadistas, o movimento de extrema-direita Tea Party, a extrema-esquerda ou os libertários norte-americanos. "Tentei ser puro até aos 20 anos e não consegui", ironiza.


"Odiava o miúdo que tinha sido. Um dia ocorreu-me rir desse miúdo em vez de ter vergonha dele." Riu-se de si próprio e pôs-se do lado do leitor. 


A ironia e o humor são também instrumentos para fazer a ponte com o leitor. "Não acredito que quem é completamente sério tenha capacidade para se distanciar e escrever sobre qualquer coisa." Ter distância para se rir de si próprio é uma forma de estabelecer "uma ligação com o leitor". "O leitor e o escritor ficam do mesmo lado."

Foi isso que Franzen fez em "Zona de Desconforto", memória dos seus anos de crescimento. "Odiava o miúdo que tinha sido. Um dia ocorreu-me rir desse miúdo em vez de ter vergonha dele." Riu-se de si próprio e pôs-se do lado do leitor.

Também é possível encontrar esse miúdo e o homem em que se tornou, com um lado masculino e outro feminino, na sua ficção. "Todas as personagens têm partes de mim. Todos já tivemos várias experiências. Sempre fui velho, mesmo quando tinha sete anos. E ainda sou uma criança. Tenho um lado feminino. Não ligo muito à separação entre homens e mulheres. Pus muito de mim em Patty" Berglund, a protagonista de "Liberdade". Outro exemplo é Alfred Lambert, o patriarca de "Correcções" que, tal como o pai de Franzen, sofre de demência. "Passei muito tempo a observar o meu pai, a ouvi-lo e a falar com ele." Uma aprendizagem que se transformou em literatura.

Mas o "eu" também pode ser um obstáculo. "A autoconsciência é um problema para os escritores. Vemo-nos a fazer as coisas e estamos constantemente a pensar como podemos escrever sobre isso." O desafio é ainda maior quando a intenção é escrever sobre assuntos pessoais, como aconteceu com o ensaio sobre o escritor e amigo David Foster Wallace, que se suicidou em 2008, com 46 anos.

Franzen recordou em Lisboa a viagem que fez à longínqua ilha chilena Alexander Selkirk, nome que homenageia o aventureiro escocês que terá servido de inspiração a Daniel Defoe para escrever "Robinson Crusoé". O pretexto real da expedição foi a observação de pássaros - um dos seus "hobbies" -, mas para a financiar Franzen propôs-se escrever um ensaio sobre a personagem de Defoe para a revista The New Yorker.

Na ilha, cujo nome original é Masafuera ("mais distante"), o escritor viveu a sua própria aventura quando foi surpreendido por uma tempestade. E, no momento em que o céu voltou a ficar azul, iluminando a imensidão verdejante das encostas rodeadas pelo azul do mar, Franzen recordou que levava consigo parte das cinzas do amigo, que lhe tinham sido entregues pela viúva de Foster Wallace para deixar naquela espécie de paraíso perdido. "Fiquei dominado pela emoção." E o texto que era para ser sobre Crusoé acabou por se transformar no ensaio sobre o seu amigo David, "Farther Away", publicado na The New Yorker, em Abril de 2011.


Como se escreve sobre um amigo? "Temos de ser implacáveis!", respondeu Frazen sem hesitar, pondo um ponto final no momento mais pessoal da conversa com a jornalista Isabel Lucas.

Afinal, escrever é aquilo que mais gosta de fazer, mesmo que haja cada vez menos leitores. "Algumas pessoas ainda lêem e andam à procura de bons livros, o que nem sempre é fácil. Estou a tentar fazer algo bom pela comunidade de leitores, tentando escrever um bom livro. Não importa se a audiência possa ser muito pequena", garantiu, reconhecendo que se o número de leitores for muito escasso isso pode ser um problema em países como Portugal, onde é difícil viver da escrita.

O que move Franzen é "a ideia de escrever alguma coisa que alguém goste de ler. Prefiro escrever do que fazer qualquer outra coisa", confessou, revelando que os sete anos que demorou a escrever os seus romances foram o período em que foi feliz.

Uma nova incursão na escrita de argumento para televisão é a única alternativa que o vencedor do National Book Award admite em relação à escrita de romances. Sem deixar de transparecer alguma mágoa pelo facto de a adaptação televisiva de "Correcções" nunca ter passado do episódio piloto, o romancista admite que consideraria "divertido" voltar a escrever para o pequeno ecrã.

"Há uns anos via a televisão como o inimigo, mas agora acho pode ser nossa amiga", assume. Defende mesmo que as grandes séries de televisão por cabo estão a fazer um trabalho equivalente ao que grandes autores de literatura, como Fiódor Dostoiévski ou Charles Dickens, fizeram no seu tempo.

Mas, para Jonathan Franzen, escrever para televisão "não é tão bom como escrever um romance". Porque há coisas que não se explicam, como a sensação de estar embrenhado na escrita, que quer voltar a sentir. "Um romance será sempre um romance. Farei tudo para voltar a escrever um romance."


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