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João Luís Barreto Guimarães: Na minha vida, a poesia está a vencer a ciência

João Luís Barreto Guimarães foi-se fazendo poeta enquanto se fez médico. Ganhou recentemente o Prémio António Ramos Rosa com o seu último livro, “Mediterrâneo”, uma obra que fala dos territórios divididos da Europa.

Ricardo Castelo
03 de Novembro de 2017 às 14:00
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João Luís Barreto Guimarães é poeta. No país dos poetas, é quase impossível ser poeta a tempo inteiro, e ele foi-se fazendo poeta enquanto se fez médico. Ultimamente, lê, escreve, pensa, respira poesia cada vez mais, sempre que pode, tratando o tempo como uma pedra preciosa. Ganhou recentemente o Prémio António Ramos Rosa com o seu último livro, "Mediterrâneo". Como outros livros seus, não é uma colecção de poemas que foram aparecendo, mas um conjunto que forma um todo, que surge para responder a alguma urgência, alguma pergunta, um mistério. É um livro que fala dos territórios divididos da Europa, belos, aterradores, portadores de civilização, sempre em disputa, sempre à procura de si mesmos. Para ele, o deslumbre da poesia ainda parece continuar a ser o mesmo de quando começou, um miúdo, a ler e a escrever poemas: o que é isto, de onde é que isto aparece?


1. Actualmente, escrevo e leio sempre que posso, sempre que tenho tempo - e opero para relaxar. Antes, era ao contrário. Mas já quando estava a fazer a minha formação e estava nos primeiros anos da minha vida científica e cirúrgica, tinha sempre a angústia de encontrar tempo para escrever.

Há um conjunto de condições básicas para podermos escrever, e uma das principais é o tempo. Outra, se calhar, é uma certa geografia propícia: um quarto, uma mesa de café, algum lugar onde sintamos que se pode abrir alguma coisa cá dentro.

Por vezes, temos tempo, escrevemos, e no dia seguinte vemos que não podemos aproveitar o que escrevemos no dia anterior. Portanto, ter tempo nem sempre basta. É preciso haver uma certa preparação. E a forma como essa preparação é feita varia muito. No meu caso, quando quero fazer essa preparação de uma forma rápida, o que faço é ler. Ponho-me a ler poesia, até que qualquer coisa se abre aqui dentro.

Quando tenho um bocadinho mais de tempo, deixo que sejam os sentidos naturalmente a fazer isso: a visão, a audição, o olfacto; a música, os cheiros, uma comida... Ando sempre com a caneta e o papel, de maneira que não me falte o estetoscópio necessário para a escrita.

2. Em minha casa havia pouca poesia. A minha mãe era professora de Físico-químicas e tinha os livros do António Gedeão, que era o Rómulo de Carvalho. Então, as primeiras poesias com as quais tive contacto foram os versos do António Gedeão, que a minha mãe dizia frequentemente pela casa.

Mas, verdadeiramente, o primeiro momento em que me lembro de ficar sobressaltado com a poesia e deslumbrado - a perguntar: "O que é isto, de onde é que isto está a aparecer?!" - foi nas aulas de Português do 9.º ou do 10.º ano, quando começo a estudar a obra do Cesário Verde e do Fernando Pessoa. E começo eu próprio a fazer as minhas tentativas: românticas, sofridas. Lembro-me de que escrevi um poema rimado sobre uma personagem que sofria e deixei o poema ficar na secretária, no meu quarto, e a minha mãe, na arrumação do quarto, leu o poema e ficou chocadíssima que eu, enquanto filho dela, me pudesse sentir daquela maneira. Mas, na realidade, o poema não era autobiográfico. Eu já estava a encarnar a minha primeira "persona" e estava a copiar alguma coisa que tinha lido, provavelmente do Cesário Verde. Portanto, posso dizer que a minha primeira tentativa de fazer um poema não foi particularmente bem-sucedida quanto à audiência.

Depois, começo a mandar poemas para Lisboa, para o DN Jovem, e começo a receber "feedback": umas vezes sim, publicavam, outras vezes não. O editor começa a dizer-me: devias ler este poeta, devias ler aquele. É aí que começo a pedir dinheiro aos meus pais para comprar livros de poesia.

Quando o meu pai pegava nos livros que eu comprava, para ver em que é que eu tinha gasto o dinheiro, não sei se ele ficava com a sensação de que tinha sido dinheiro bem gasto...

O meu primeiro livro foi uma edição de autor e foi pago pelo meu pai. Não sei se ele compreendia exactamente o que estava nos meus poemas - nem eu sei se compreendia -, mas ele percebia que era qualquer coisa que não deveria interromper. E estou-lhe grato por isso.

3. Dediquei um livro ao processo de luto pela morte do meu pai. Chama-se "A Parte pelo Todo" e parte de uma epígrafe da Emily Dickinson e que diz: "First - Chill - then Stupor - then the letting go". Na primeira parte, tem nove poemas que obedecem ao processo do calafrio, do choque, do receber a notícia, daquela série de semanas e momentos iniciais a tentar perceber o que aconteceu. A segunda parte é sobre a fase do processo do luto em que o indivíduo anda um pouco à deriva: diz coisas tontas, toma antidepressivos, bebe, e não sabe que rumo tomar. E a última parte são outros nove poemas em que se fala sobre a fase em que a vida realmente recomeça. Surgem as viagens, as amizades, as comidas. Surge o conceito de beleza, o conceito de justiça e o conceito de acordar no dia seguinte.

4. Existe uma grande preocupação com a estrutura em quase todos os meus livros. E também no Mediterrâneo, que está dividido em quatro partes. Acho que o escrevi para relembrar onde é que a Europa nasceu. Era uma crítica à atitude de alguns países do Norte da Europa em relação aos países do Sul.

Lê-se como uma deambulação de uma personagem pela geografia mediterrânica e europeia, desde o sítio onde a oliveira começa até ao sítio onde a oliveira já não cresce mais. Onde deixa de ser o vinho a bebida preferencial e passa a ser a cerveja. Onde deixa de ser o catolicismo a religião principal e passa a ser o protestantismo. Portanto, o livro move-se nessa geografia e tem um espectro temporal de mais de dois mil anos. E mostra claramente que, afinal, vimos todos de um caldo comum, desta História.

5. Na minha vida, a poesia está a vencer a ciência. A prioridade da minha vida inverteu-se. De há alguns anos para cá, resolvi reduzir a minha actividade profissional como médico e comecei a dispor de muito mais tempo, muitas mais tardes, para escrever. Mas o contacto que tenho, nas manhãs e algumas tardes, com os doentes - as histórias deles, os seus dramas, o que eles contam nas consultas -, por vezes, leva a minha poesia para uma certa abertura à vida que não é muito habitual na poesia portuguesa contemporânea.

Mas essa abertura ao mundo também vem das minhas leituras e da oportunidade que tenho tido de ler poesia europeia e mundial nessas tardes de que disponho. É aí, com os livros de poesia de várias línguas, que verdadeiramente percebo que há mais mundo além do mundo.

Houve uma certa poesia portuguesa, hermética e simbólica, que fez o seu percurso na metade do século passado, que se fechou sobre si própria e sobre a linguagem. Esse caminho foi interessante enquanto experiência poética - e eu não descarto nenhuma das experiências poéticas que leio e que existiram - mas, de alguma forma, afastou os leitores da poesia. Esse papel foi ocupado pela música, pelas letras, pelo rap: passaram a ser esses os veículos transportadores das mensagens que realmente dizem alguma coisa aos cidadãos.


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