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Frederico Lourenço: As pessoas tendem a querer as respostas todas da Bíblia

O ensaísta Frederico Lourenço decidiu traduzir a Bíblia Grega e dá-la a conhecer, no seu todo, pela primeira vez, em português. Chega hoje às livrarias o primeiro volume de seis, que serão publicados até 2020.

Miguel Baltazar/Negócios
23 de Setembro de 2016 às 16:00
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É um dos livros mais lidos do mundo e, no entanto, é sempre possível fazer novas leituras. Encontra-se nele tudo o que é humano e tudo o que é transcendente. Nele, estão todas as dúvidas sobre quem somos e o que procuramos em Deus. Frederico Lourenço decidiu traduzir a Bíblia Grega e dá-la a conhecer, no seu todo, pela primeira vez, em português.

É uma tradução que pretende fazer viver o texto da Bíblia na sua dimensão mais literária, e numa leitura aberta, interrogativa. Chega hoje às livrarias o primeiro volume de seis, que serão publicados até 2020. É um trabalho de anos. É o trabalho de uma vida. É um trabalho quase impensável, numa época em que traduções tão complexas são feitas por equipas e não por um homem só. É professor, ensaísta, escritor. Mas, neste momento, diz, é um servo da Bíblia. 


1. O primeiro volume [Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos] saiu agora e o segundo volume já o tenho pronto. Neste momento, estou a trabalhar no terceiro, que é o primeiro volume do Antigo Testamento, que contém os livros proféticos. Pelas minhas contas e da editora, em 2020 terão saído os seis volumes da Bíblia Grega. Ainda tenho muitos anos de trabalho pela frente... Mas é bom. É o grande projecto da minha vida. Já penso: o que é que vai ser de mim quando eu acabar a tradução da Bíblia? Vou ter de fazer um esforço sobre-humano para me mentalizar que a minha vida não acabou naquele momento.


2. Já em criança tinha noção de que existia essa coisa chamada grego, porque os meus pais tinham estudado grego no liceu, numa altura em que isso era normal, e havia em casa gramáticas e dicionários de grego. Aquela língua fascinou-me logo. Aprendi o alfabeto grego antes dos 10 anos. Mas, durante a minha adolescência, o que queria era ser músico e andei no Conservatório. Aos 20 anos percebi que o meu talento musical não daria para ter uma carreira como músico. Decidi desistir do curso de piano e candidatei-me ao curso de Línguas e Literaturas Clássicas. Fiz os exames de admissão de latim e de grego e entrei para o primeiro ano em 84. Ao fim da primeira semana de aulas já sabia qual das duas línguas – latim ou grego – era aquela que queria. Já vou com 32 anos de estudo intenso de grego.

3.Nesse ano em que entrei para a faculdade, encontrei, na feira do livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII, uma edição do Novo Testamento Grego. Ainda tenho essa edição e está lá a data em que a comprei: "Junho de 84". Claro que, na altura, não conseguia entender nada do que ali estava escrito, mas o facto de ter o Novo Testamento em grego era um incentivo para aprender grego suficiente para ser capaz de o ler.

Depois, à medida que fui estudando grego, fui percebendo que ler este livro – ou, pelo menos, alguns livros do Novo Testamento – era mais fácil do que ler outras coisas escritas em grego. Mais fácil do que ler Homero, por exemplo.

A linguagem foi pensada para ser acessível. Os autores do Novo Testamento e, sobretudo, os quatro evangelistas, socorreram-se de um grego que era facilmente compreensível para qualquer pessoa.

A Bíblia Grega foi feita por judeus falantes de grego, judeus bilingues, que dominavam o hebraico e o grego. Os primeiros destinatários desta Bíblia eram judeus de Alexandria e de outros sítios fora do território da Judeia. Mesmo a Judeia, no tempo de Jesus, já era um território muito helenizado.

É um pouco como acontece hoje em dia nos Estados Unidos: se perguntarmos a um judeu americano se ele domina melhor a Bíblia em inglês ou em hebraico, mesmo que saiba hebraico, vai dizer que domina melhor em inglês. As pessoas crescem num ambiente linguístico em que se fala inglês – ou grego, neste caso – e é mais acessível a Bíblia na sua língua mais próxima. A Bíblia grega surgiu porque havia necessidade de uma Bíblia em grego para os judeus que já não dominavam tão bem o hebraico.

4.Não lutei muito nem com o texto da Odisseia nem com o da Ilíada. Achei uma experiência grata fazer essas traduções. Ficava sempre muito agradecido ao Homero por ele me ter permitido fazer textos tão bonitos em português.

A Bíblia é muito mais difícil de traduzir. Embora o grego, às vezes, seja mais fácil, a mensagem é difícil.

Esta tradução da Bíblia inclui notas e comentários. Em relação à Ilíada e à Odisseia, quis que as pessoas lessem como os ouvintes no tempo de Homero ouviam os poemas: sem notas, sem explicações. É claro que as pessoas também ouviam a Bíblia sem notas nem explicações, mas sendo um texto muito mais complexo, com tantas autorias diferentes, e que levanta questões muito melindrosas do ponto de vista da interpretação das palavras, as notas são importantes. Tento não tornar as notas muito chatas. E, sobretudo, faço um esforço muito grande para tornar claro aquilo que estou a dizer. Gosto que as coisas sejam compreensíveis. Não serve de nada estar a escrever coisas que as pessoas não vão entender.

5.A Bíblia é um livro que nos coloca perante tudo: tudo o que é a vida humana, tudo o que é o transcendente, que está para lá daquilo que nós vemos à nossa volta. Coloca-nos permanentemente perante a pergunta: o que é Deus? O que é que Deus quer de nós? E também perante a questão de como é que um livro pode exprimir algo que é inexprimível, que é Deus.

As pessoas tendem a querer as respostas todas deste livro. Mas eu pergunto-me todos os dias: como é que podemos ter a expectativa que um livro nos dar as respostas todas? Acho que, muitas vezes, nos dá mais perguntas do que respostas. Acho que muitas pessoas, se conhecessem bem a Bíblia, se colocariam mais perguntas. E acho que as pessoas devem colocar-se perguntas. Este não é um livro para ser lido passivamente; é um livro para ser lido com espírito interrogativo. Não é para ser um monólogo, que nos é imposto, mas um livro dialogante.

6.De tudo o que escrevi como autor, o que mais gosto é um livro chamado "Um Lugar Supraceleste e Outras Meditações", que é uma colecção de reflexões sobre muitos temas: música, literatura, arte, grego, a vida do dia-a-dia, namoro, tudo. Deu-me muito prazer escrever esse livro. A escrita mais criativa, de ficção, dá-me mais angústia: nunca está como quero, acho sempre que podia estar melhor, e coloca-me numa posição ingrata perante mim próprio.

Para já, não quero escrever como autor. De qualquer maneira, enquanto estiver a traduzir a Bíblia, não sobra tempo para mais nada. Já não se usa muito, no século XXI, uma pessoa só traduzir a Bíblia inteira. Hoje em dia, normalmente, é uma equipa de pessoas que faz a tradução. A ideia de alguém a traduzir a Bíblia sozinho, como o São Jerónimo ou o João Ferreira de Almeida, o primeiro tradutor português no século XVII, é um bocadinho antiga. Sendo isto um "one man show", não dá para me dispersar. Para já, sou um servo da Bíblia. 

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