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Eduardo Paz Ferreira: Comissão Juncker terá uma missão ainda mais difícil

Acaba de publicar mais um livro muito crítico sobre o percurso recente da União Europeia. Em véspera da tomada de posse da nova Comissão, falámos com o presidente do Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e signatário do "Manifesto dos 74" que pede à Europa a renegociação da dívida.

31 de Outubro de 2014 às 14:02
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Está a abrir-se um novo ciclo político na União Europeia. Acha que a nova Comissão Europeia de Jean-Claude Juncker pode virar uma nova página?

Acho que a Comissão Juncker vai ser melhor do que a Comissão Barroso, até porque, dado o perfil de muitos comissários, vai ter mais força política. Mas não tem uma missão fácil pela frente e alguns acontecimentos recentes mostram que essa missão será ainda mais difícil. Não sei se será bom ou mau, mas talvez uma situação de conflito permita encontrar caminhos com futuro e seja preferível a esta paz podre.

 

Está a falar do quê, em concreto?

Pensávamos que a crise do euro tinha sido ultrapassada, e o que vemos é uma situação de pré-pânico nos mercados e que cada vez se fala mais na dissolução do euro. Esta recusa da França em seguir a determinação de respeitar o limite máximo de 3% para o défice e as declarações recentes do primeiro-ministro francês, a sublinhar que ‘nós somos o país soberano, nós é que decidimos o que fazer’, corresponde, no fundo, a questionar as decisões sobre a governação da união monetária. Eu, sendo um feroz crítico do Tratado Orçamental e achando que, neste momento, a Europa precisa claramente de mais investimento e não de mais austeridade, encaro com muita simpatia a postura destes países – estou a falar da França mas também de Itália, cujas economias juntas representam mais do que a alemã. Se houver o apoio de outros países, acho que, neste momento, pode haver condições para obrigar a Alemanha a fazer outra política económica, mais flexível em termos de cumprimento das metas orçamentais e mais amiga do crescimento.

 

A França já obteve, no passado, dois anos suplementares para reduzir o défice e até tem obtido financiamento a custo historicamente baixo, mas a sua economia pouco cresce e o desemprego está em máximos. Porquê?

A França é uma situação bastante inexplicável, como o é a actuação de vários governantes franceses. François Hollande, quando foi eleito, disse que havia uma grande alegria em França pela sua eleição mas também em toda a Europa porque iria repor o equilíbrio e acabar com a política de austeridade e, afinal, o que fez a seguir foi ir a Berlim e repor o eixo tradicional.

 

Porque Angela Merkel o obrigou ou porque, depois de ganhar as eleições, concluiu que a França tem de desafogar a economia do peso do Estado?

Julgo que ele ficou ‘entalado’ entre várias influências. Uma delas é o histórico da integração europeia que foi sempre construída em torno do eixo Paris-Berlim – no fundo, a Europa nasce para assegurar a paz entre estas duas potências, pelo que um corte seria sempre difícil. Ainda assim, é difícil encontrar uma explicação racional para a mudança brusca de posição do presidente Hollande, que começou por contestar o Tratado Orçamental para depois deixar de o questionar. Noto, apenas, que nessa época estava muito sozinho, ao passo que agora conta com o apoio do primeiro-ministro italiano [Matteo Renzi].

 

Mas já nessa altura tinha algum apoio da Itália de Mario Monti.

Mario Monti nunca questionou a Alemanha, até porque chegou a chefe de Governo depois de uma espécie de golpe de Estado alemão em Itália. É uma figura notável, um técnico reputadíssimo e tenho muita pena que tenha acabado a sua carreira política depois de tantas traições internas. Mas ele não tinha apoio político interno. Renzi tem, e está a tentar fazer um equilíbrio que as sociais-democracias europeias têm tido dificuldade em estabelecer, entre as políticas de austeridade e as políticas de reforma. O que ele tem dito é que vai fazer as reformas estruturais que a Europa quer, mas precisa de tempo, em termos orçamentais, para o fazer, que é o mesmo que o Hollande está a tentar fazer. Se isto funciona ou não, não sei. Mas é dever dos Estados que enfrentam elevados níveis de desemprego baterem-se por este tipo de soluções. Já no caso de Portugal, mudar o objectivo do défice de 2,5% para 2,7% corresponde a uma operação de cosmética que não altera os dados essenciais da questão.

 

Pode e deve Portugal ambicionar défices mais altos quando acaba de sair de um programa de resgate pedido porque o Estado deixou de ter quem lhe emprestasse dinheiro para financiar os défices?

Pode sempre perguntar-se se Portugal tem poder negocial, mas julgo que, no actual contexto, podia juntar-se a este grupo liderado pela França e por Itália.

 

Essa aliança pressupõe o entendimento de que mais défice ou, pelo menos, uma redução mais lenta do défice, leva a mais crescimento e emprego – é assim?

Esta política de austeridade, hoje em dia, praticamente não tem defensores. Em si, é uma palavra virtuosa que associamos a grandes figuras, como Alexandre Herculano, aos nossos avós, e tudo isso ajudou a criar uma ideia simpática em torno de políticas de austeridade que, na verdade, são políticas que destroem a vida das pessoas. Em Portugal, pusemos em prática uma política de austeridade violentíssima e o que é que sucedeu? Nada de extraordinariamente positivo. Pelo contrário. O défice está mais ou menos controlado, mas à custa de muitas operações extraordinárias e artificiais, e a dívida pública continua a subir. E, do ponto de vista da economia e da sociedade, as consequências foram terríveis.

 

Que alternativa teria preferido?

É óbvio que para combater recessões são precisas políticas expansionistas e não contraccionistas.

 

Com que meios?

A partir do momento em que Portugal aderiu ao euro, teria de ter tido mecanismos de apoio. Não faz sentido tirar a um país a política monetária, a cambial e a possibilidade de recurso ao banco central como credor de última instância sem mecanismos fortes de apoio, e depois fazê-lo conviver com uma moeda forte que foi muito nefasta para as exportações portuguesas.

 

Dados do Banco de Portugal indicam que a quota é agora maior do que antes do euro.

Isso está a acontecer à custa da desvalorização salarial. O que antes se conseguia pela desvalorização cambial faz-se agora pela redução dos salários e dos direitos dos trabalhadores, o que é um caminho péssimo que está a pôr em causa a coesão económica e social do país. Esta é uma política suicida que não nos vai levar a lado nenhum.

 

No seu livro, associa Angela Merkel, o Tratado Orçamental e a primazia ao combate ao endividamento dos Estados à entrada da Europa numa espécie de "Idade das Trevas". Porquê?

Do ponto de vista simbólico, o Tratado Orçamental tira totalmente os poderes de decisão aos Estados e aos parlamentos nacionais.

 

 

O erro fundamental está no Tratado Orçamental.
Regras fixas em finanças públicas é uma ideia pela qual não tenho simpatia.

 

 

Porquê?

Porque exige que as propostas de Orçamento sejam previamente aceites por Bruxelas e porque anula a possibilidade de os Governos fazerem políticas discricionárias adequadas a cada momento. Agora, tocou aí num ponto que é relevante: Portugal tem uma dívida pública elevada e por isso fui um dos subscritores do ‘Manifesto dos 74’, que defende que é preciso fazer qualquer coisa a esse respeito. Não estou a sugerir que nesta altura se repudie a dívida nem que se saia do euro, o que teria consequências desastrosas para a nossa economia, muito embora eu ache que os Governos devem ter sempre um plano B. Mas, dentro do euro, é perfeitamente possível explorar instrumentos que possam permitir um alívio da dívida, seja através de ‘eurobonds’ ou de um fundo comum de amortização.

 

Acha possível pedir aos parceiros europeus o alívio da dívida acumulada e, ao mesmo tempo, renegar um Tratado que instrui os Governos a fazer, em regra, Orçamentos em que a previsão de despesa coincida com a da receita para não gerar mais dívida?

O erro fundamental está no Tratado Orçamental que, quanto a mim, é extremamente negativo. Regras fixas em finanças públicas é uma ideia pela qual não tenho simpatia.

 

Não podem ser uma garantia para os contribuintes, sobretudo para os do futuro?

Aquela frase do Keynes "no longo prazo, estamos todos mortos" tem sido mal interpretada: não quer dizer ‘safemo-nos’ no presente; o que nos diz é o contrário: se destruirmos o presente não há futuro. E é isso que acontece com as políticas de austeridade. Agora, é preciso fazer um controlo cuidadoso do gasto público e não digo que não haja necessidade de a administração do Estado ser repensada. Mas, quando vejo um tecto às prestações sociais nesta proposta de Orçamento, vejo uma negação à minha concepção de para que servem os impostos. E eu gosto de pagar impostos e até costumo dizer que, além de existir um dever de pagar impostos, há um direito em pagar impostos. Agora não neste nível e quando há uma enorme fraude e evasão fiscal e a preocupação do Governo é com as cabeleireiras, enquanto as grandes empresas portuguesas pagam impostos na Holanda, o que é o reflexo de outra coisa absurda da UE.

 

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