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Domingos Soares Franco: Fui considerado um traidor no meio porque era um novo-mundista

Tem o rótulo de irrequieto e é conhecido por ser um experimentalista na enologia e na viticultura. O enólogo Domingos Soares Franco soma já 40 vindimas e 39 anos na empresa da família - a José Maria da Fonseca. Agora está a passar o testemunho à sétima geração.
Filipa Lino e Bruno Colaço - Fotografia 12 de Março de 2021 às 11:00

No Verão Quente de 1975, Domingos Soares Franco foi rejeitado no Instituto Superior de Agronomia por ser filho de um "fascista". Pertencia a uma das famílias mais antigas no setor dos vinhos, dona da José Maria da Fonseca, que produz moscatel de Setúbal e o famoso Periquita. Foi para a Califórnia estudar enologia e viticultura. Viver nos EUA mudou-lhe "o chip". Quando regressou, o "establishment" não o aceitou e o seu curso nunca foi reconhecido. Tem o rótulo de irrequieto e é conhecido por ser um experimentalista, tanto na enologia como na viticultura. O enólogo soma já 40 vindimas e 39 anos na empresa da família. Foi eleito "Enólogo Vinhos Generosos do Ano", pela revista Vinho Grandes Escolhas e distinguido como "Personalidade do Ano no Vinho" pela Revista de Vinhos. Está na hora de "sair pela porta grande", afirma.

Nascer numa família com uma longa história no negócio dos vinhos foi uma bênção ou uma herança pesada?

Foi mais uma bênção. Nunca gostei de trabalho de escritório. Sempre gostei de andar no campo. Ainda no outro dia chovia torrencialmente e eu estava completamente encharcado. O meu pessoal, alguns deles com 30 e 50 anos de casa, diziam-me: "O menino está igual ao que era com cinco anos."

 

Ainda o tratam por menino?

Alguns ainda me tratam assim. O meu signo é touro. Quando meto uma coisa na cabeça é para andar para a frente. E sempre gostei da vinha. Ninguém na família me empurrou para a viticultura nem para a enologia.

 

Como é que o seu pai o preparou a si e ao seu irmão para lhe sucederem no comando da José Maria da Fonseca?

Acabei o liceu em Setúbal no Verão Quente de 1975. Nessa altura o meu pai perguntou-me o que é que eu queria fazer. Disse que queria estudar agronomia e tentei entrar no Instituto Superior de Agronomia (ISA). Só que fui rejeitado por ser filho de quem era. O meu pai naquela altura era considerado fascista.

 

Tiveram problemas com os trabalhadores a seguir ao 25 de Abril? Houve uma revolta contra a família?

Pelo contrário! Depois de as cervejas serem nacionalizadas houve uma tentativa de nacionalizar também os vinhos. Foi marcada uma reunião em Lisboa, no Partido Comunista, para votar a nacionalização do setor dos vinhos. Nessa altura, a Sogrape e a José Maria da Fonseca eram os dois maiores grupos. E foram os nossos trabalhadores e os da Sogrape que impediram a nacionalização das empresas de vinhos nessa votação. O nosso pessoal, com medo de que houvesse tentativas de assalto e de ocupação das nossas instalações aqui em Azeitão e para nos defenderem, fizeram turnos de 24 horas, armados com caçadeiras.

 

Foi uma grande prova de lealdade.

Sim. Mesmo quem era do contra sempre ficou a trabalhar. Não pusemos ninguém na rua. Mais tarde as vendas caíram a pique e tivemos de vender os nossos topos de gama a 25 escudos a garrafa. Isso equivale a 20 cêntimos. Foi com esse dinheiro que pagámos os ordenados.

Foi a maior crise que a empresa passou?

Não. A pior de todas foi quando o meu avô morreu. Ele tinha altos e baixos na sua vida. Ganhava ou perdia fortunas. E, quando morreu, tinha perdido a fortuna. Na altura éramos donos de 25 vinhas em Colares, da adega de Colares, de metade da Herdade do Pinheiro, que são 5 mil hectares murados aqui na região de Setúbal. Tivemos de vender tudo. Ficámos só com as vinhas, que eram poucas, e com as instalações em Azeitão. Foi a pior crise que passámos.

 

Voltando ao 25 de Abril. Mantiveram a empresa e os trabalhadores, mas teve de ir para os EUA.

Quando me barraram no ISA, fui com o meu pai a França para ver se conseguia entrar lá na universidade. Fomos a Bordéus, a Montpellier e a Dijon. Todas me aceitaram com a condição de andar para trás dois anos e ir para o liceu estudar francês. Nunca fui dado a línguas. Só que não me apetecia nada andar para trás dois anos. Também havia a universidade de Geisenheim, na Alemanha, mas eu não falava alemão. Em Itália e Espanha ainda não havia universidades nesta área na altura. Nesse mês de Agosto apareceu em casa dos meus pais para jantar o presidente da companhia americana, de que éramos sócios. Ele era muito amigo dos meus pais. Nós já exportávamos para os EUA há muitos anos. Chegámos a vender um milhão e meio de caixas de Lancers Rosé para os EUA. Quando estávamos a jantar, ele perguntou-me o que é que eu ia fazer. Respondi que não sabia. Ele olhou para mim e disse-me: "Vem para a Califórnia." Eu olhei para ele, depois olhei para os meus pais e disse: "Vou!" Um mês depois estava a caminho dos EUA. As aulas já tinham começado lá, por isso, primeiro fui para um colégio interno em Connecticut, onde estava o filho dele. Acabei o liceu outra vez lá. Estudei física, química, matemática. Depois inscrevi-me na Universidade de Davis, onde tirei todas as cadeiras que havia de enologia e viticultura. Acabei o curso em 1980. A minha primeira vindima é desse ano. A pedido do meu pai, quando acabou aqui a vindima, fui outra vez para lá fazer um trabalho sobre moscatéis no laboratório da faculdade.

 

Quando foi para os EUA tinha a intenção de regressar?

Não. Quando eu sai daqui havia tropa e tínhamos de ter uma autorização militar para sair durante três meses. Entrei nos EUA com o visto de turista, válido por três meses. E, três meses e um dia depois, a polícia de imigração bateu-me à porta. Pedi-lhes para não me mandarem para Portugal porque, se isso acontecesse, era dado como refratário e era preso. Na altura era assim. Disseram-me para ir a Nova Iorque a um gabinete de vistos de imigrantes na 5.ª Avenida. Fui lá de manhã e à hora de almoço tinha o visto de estudante até acabar o curso. Quando terminei, não queria vir para cá.

A América mudou a minha maneira de pensar, de agir, de falar.

Porquê?

Estive na América seis anos. O "chip" cá dentro mudou radicalmente. Mudou a minha maneira de pensar, de agir, de falar. Lembro-me de chegar cá, ir ao cinema e pôr os pés em cima da cadeira da frente. Isto era tipicamente americano. Os meus pais diziam-me sempre quando entrava em casa para tirar o chapéu e para usar garfo e faca. Eu vinha de lá o mais americano que há. Só me dava praticamente com malta do Arkansas, do Texas... O choque cultural foi quando cheguei cá e tive de me adaptar, de um dia para o outro, à maneira de pensar em Portugal. Entretanto, um amigo meu brasileiro tentou convencer-me a ir viver para o Brasil. Mas um dia, quando estava quase a acabar o curso, o meu pai ligou-me a perguntar o que é que eu pretendia fazer. Disse-lhe que queria ir viver para o Brasil. Mas ele precisava de mim...vim para cá. Isto já não me dizia nada.

 

Sentiu que estava a ser prejudicado na sua vida pelo facto de ter de responder às necessidades da empresa da família?

Não, eu estava era noutra. Nunca percebi que era preciso estar cá. Quando cheguei, percebi que sim.

 

Ao chegar com outra mentalidade, com outra maneira de ver as coisas, deve ter tido muitos choques com a família.

Tive sobretudo muitos choques culturais com o meu pai e com o meu irmão. A minha maneira de pensar a parte dos vinhos e das vinhas era completamente diferente da maneira de pensar em Portugal. Ainda é.

A Associação Portuguesa de Enologia nunca me aceitou. O meu curso na Universidade de Davis não foi reconhecido.

Teve dificuldade em ser aceite no meio?

Não fui aceite. Fui considerado um traidor. Era um novo-mundista. Tenho seis ou sete amigos da minha idade nos vinhos. Todos eles se formaram cá ou em França. Fui o primeiro português a entrar na Universidade de Davis em vinhos. Quando cheguei cá, não fui aceite. Só fui por esses meus amigos. A Associação Portuguesa de Enologia nunca me aceitou. O meu curso nunca foi reconhecido. Pedi equivalência e não me foi dada. E eu disse: "Também não preciso de vocês para nada."

 

Quando é que sentiu que começava a ser respeitado no meio?

Nos anos 1990.

 

Foi quando provaram os seus vinhos que começaram a perceber os conhecimentos que trouxe da América?

Exatamente. Na altura, a maior parte do vinho branco produzido cá era oxidado. Eu fiz um vinho branco como se faz na América, extremamente aromático. Era muita fruta, muita fruta. Lançámos o vinho e demo-lo a provar. Diziam que eu tinha posto bananas dentro do vinho porque cheirava a banana. (risos) Hoje em dia isso é mais do que normal. Os vinhos têm aromas próprios. Mas neste processo tive sempre o meu pai a aconselhar-me. Quando tentei aplicar os meus conhecimentos cá, não havia nada! Não havia onde comprar as máquinas que eu queria. Ainda era tudo feito de cimento. Tive de começar do zero! Comecei a comprar na Europa. Viajava muito. Os outros enólogos perguntavam-me porque é que eu viajava tanto. Respondia que era para ver as máquinas e para as conhecer. Eles diziam que liam sobre as máquinas. Mas eu gosto é de ver. Eu e o meu irmão demos a volta à empresa em equipamento. Vendemos os nossos 51% aos americanos, ainda tínhamos 49%, e, com esse dinheiro, pagámos as dívidas aos bancos e fomos comprar terras aqui na região de Setúbal. Comprámos faseadamente perto de 500 hectares e a adega José de Sousa, em Reguengos.

 

É também um profundo conhecedor do comportamento das castas, portuguesas e internacionais. Um dos seus investimentos foi um campo ampelográfico da Quinta de Camarate.

Sim. O meu pai gostava mais de vinhas do que de vinhos. Gostava do manancial de castas que existe por este mundo fora, especialmente em Portugal. O meu tio António começou a coleção ampelográfica de castas nos anos 1920, o meu pai aumentou-a e eu tenho vindo a aumentá-la também.

 

É uma das suas paixões.

Sim. É um laboratório vivo. Ali aprende-se tudo. A tendência do consumidor está ali.

 

Consegue perceber o que é que os consumidores vão querer daqui a dez anos? Como é que se faz isso?

Viajo bastante. Cheguei a viajar seis meses por ano. Tento perceber qual é o caminho, para onde está a ir o gosto. Neste momento o gosto dos portugueses está em vinhos com estes três parâmetros: madeira, álcool e doce. O que é que vai acontecer? Os açúcares vão desaparecer e os consumidores vão começar a querer outros aromas – porque a madeira tapa completamente os aromas do vinho – e um teor de álcool abaixo dos 14 ou 15 graus.

 

Como é que Portugal é visto no mundo enquanto produtor de vinhos?

Como uma província de Espanha. 

Os tintos portugueses são já muito respeitados lá fora, mas não em todos os países. Ainda há muito que trabalhar para isso. Vai demorar mais uma ou duas gerações.

Mas já é respeitado?

Começa a ser respeitado. Começa-se a ver que Portugal não é só vinho do Porto, que também produz brancos, tintos, rosés e espumantes. Os tintos são já muito respeitados lá fora, mas não em todos os países. Ainda há muito que trabalhar para isso. Vai demorar mais uma ou duas gerações. E depois é preciso que os governos portugueses nos apoiem nas promoções, como fazem os espanhóis, os italianos e os franceses. Esses países são o que são lá fora porque são altamente subsidiados para promover o país.

 

A AICEP não tem feito esse trabalho?

No tempo do ICEP fazia-se isso. Quando passou para AICEP, acabou.

 

Quem está a fazer esse trabalho são os próprios produtores?

E agora a Viniportugal, que está nisto há meia dúzia de anos. Nós estivemos no G7, que reunia as sete maiores empresas exportadoras de vinhos em Portugal. Isso acabou há uns 10 anos. Mas, durante 15 anos, trabalhámos em conjunto. Tínhamos um orçamento em conjunto para promover os nossos vinhos lá fora.

 

Porque é que acabou?

Porque entrou a geração seguinte, que tem outras maneiras de pensar. Mas fazíamos ações de promoção que valiam a pena. Íamos juntos durante quinze dias percorrer, por exemplo, o Canadá. Todos os dias tínhamos provas. Íamos os sete, com tudo muito bem organizado, com contactos feitos com a comunicação social.

 

Continua motivado para juntar esforços. Sei que se reúne duas vezes por ano com os outros produtores de vinhos da região de Setúbal.

A ideia de juntar todos os enólogos da região duas vezes por ano é do proprietário do restaurante Casa das Tortas, aqui de Azeitão. Eu imediatamente apadrinhei essa iniciativa. E, quando vejo que a coisa está a morrer, marco o encontro em minha casa.

 

Esses encontros servem para quê?

Cada um leva o que quiser dos seus vinhos para os outros provarem. E depois discute-se o que for preciso. É isso que quero – que falem a verdade. Podem dizer que não gostam, mas têm de explicar porquê.

 

Há uma regra nesses encontros. Tudo o que dizem nessa reunião não pode sair para fora.

Claro! E se um não sabe como trabalhar aquele vinho, nós tentamos ajudá-lo.


É quase uma irmandade.

Isto acontece muito lá fora. Lembro-me de estar na Suécia, num jantar com outros enólogos, onde cada um tinha apresentado os seus vinhos e eu estava a fazer uma pergunta ao que estava sentado à minha frente. Já não me lembro o que era. Só o vejo pôr a mão por baixo da mesa para me passar um papel com uma coisa escrita que era segredo absoluto a nível mundial. Era um produto que não se podia usar na altura e que hoje em dia é legal – os taninos dos vinhos. O papel dizia assim: "A marca é esta. Destrói o papel." Sabe como é que o destruí? Engoli-o. Há uma entreajuda muito grande lá fora.

 

É errado pensar que há muita competição entre produtores?

Há competição, mas não existe segredo nenhum. Está tudo no Google. É só juntar as peças.

 

O segredo dos vinhos portugueses pode estar na viticultura?

Sim, o segredo dos vinhos portugueses está no campo. E ainda se fala muito pouco disso. Mas estamos a melhorar. As castas certas, para a região certa, para o clima certo, para o solo certo, para a inclinação certa. O nosso problema é que não temos área suficiente. Nunca poderemos fazer um vinho como o Yellow Tail, um vinho australiano que teve um sucesso brutal na América, onde chegaram a vender 50 milhões de caixas.

 

O Domingos é um experimentador, gosta de misturar.

Adoro! Eu e o meu irmão estamos a passar para a sétima geração as rédeas da empresa. Na parte que me toca, já há dois ou três anos que estou a fazer a passagem de testemunho devagar. Fiz um vinho tinto para comemorar as minhas 40 vindimas, mas este ano, que tenho um feeling que vai ser um ano bom, de qualidade, vou inventar um vinho branco que será o meu último. Já tenho o perfil todo delineado na minha cabeça e já o comuniquei à equipa de enologia.

 

É na cabeça que nasce um vinho?

Não. É aqui. (aponta para o coração)

 

Como assim?

É viver, dormir e acordar com ele.

Aconteceu-me muito acordar a meio da noite com uma ideia para um vinho. Muitos dos topo de gama que fiz foi assim que nasceram.

Acontece-lhe acordar a meio da noite com uma ideia para um vinho?

Aconteceu-me muito. Muitos dos vinhos topo de gama que fiz foi assim que nasceram. Os topo de gama são meus filhos. É a maneira de eu transmitir para o consumidor aquilo que vai dentro da minha cabeça e do meu coração. Começa com um "feeling", depois vou pensando, pensando. É semelhante a um chef de cozinha que usa os ingredientes certos. Depois, tanto posso demorar três dias, como posso demorar um ano a fazer testes na sala de provas. Nesses momentos preciso de silêncio total.

 

Ouvi-o dizer uma vez numa entrevista: "O meu irmão ganha o dinheiro e eu gasto-o."

Ele ficou danado comigo. (risos) Mas é verdade!

 

Mas onde é que gasta o dinheiro?

Quando o meu pai passou o negócio para nós, o meu irmão ficou com a parte financeira e eu com a parte técnica. Ele ganhava o dinheiro nas vendas e eu gastava-o a comprar maquinaria. Lembro-me de estar na maior feira de equipamento de engarrafamento na Alemanha e de ligar para cá a dizer ao meu irmão: "Olha, vou comprar uma linha de engarrafamento. Posso?" E ele disse que sim.

 

Mas disse-lhe quanto custava?

Não. (risos)

 

O seu irmão devia ter medo de cada vez que o deixava ir às compras.

Depois começou a ter medo. Uma das propriedades que nós comprámos foi enquanto ele estava na Turquia de férias. Andávamos os dois a negociar a compra da propriedade e a meio da viagem dele o dono veio ter comigo e eu fechei o negócio. Quando o meu irmão chegou, disse-lhe: "Já temos mais 200 e tal hectares. Comprei a herdade." E ainda bem que comprei.

Que momento é este que a empresa está a passar em termos financeiros?

Temos conseguido passar entre os pingos da chuva. Antes da pandemia exportávamos à volta de 65% a 70% da produção. No mercado interno, vendíamos mais na restauração do que nos supermercados. Depois a coisa inverteu-se, e ainda bem. A restauração parou e nós subimos nos supermercados. Isso equilibra as vendas. A exportação também tem sido equilibrada porque, tirando o Brasil, os nossos mercados principais são países monopólio, onde o consumo é controlado pelo Estado, como é o caso da Escandinávia e do Canadá. As vendas nos EUA também estão a crescer muito. Temos tido sorte. No ano passado não fizemos o que estava orçamentado, mas mantivemos as mesmas vendas de 2019. Este ano estamos com as vendas praticamente iguais às do ano passado. Nas exportações fizemos mais um bocadinho. Estamos a vender muito em supermercado. Mas na Escandinávia os supermercados não podem vender. É tudo pela internet.

 

Em 2000 decidiu relançar o Moscatel Torna-Viagem, que remonta ao século XIX. Para isso fez uma parceria com a Marinha Portuguesa. Porque é que se lembrou disso?

O Chefe do Estado-Maior da Armada pediu ao meu irmão se a José Maria da Fonseca podia dar umas garrafas para as receções a bordo do navio-escola Sagres, que ia partir para uma viagem, salvo erro ao Brasil. O meu irmão disse que sim. Quando ele me contou isso sugeri que fizéssemos uma troca com a Marinha. Nós dávamos as garrafas e, em contrapartida, iam uns cascos no navio para fazer o vinho Torna-Viagem. Sempre duvidei se o Torna-Viagem teria mesmo uma diferença. O meu pai e o meu tio António diziam que sim. Mas eu sou como São Tomé – preciso de ver para crer. E assim foi. Foram seis cascos. Dois de moscatel roxo e quatro de moscatel de Setúbal. De todos os cascos fica cá sempre uma "testemunha", que é um casco do mesmo lote, que fica armazenado, para depois se fazer a comparação. Quando a Sagres regressou da viagem armazenaram-se esses cascos e eu esqueci-me completamente deles. Tínhamos combinado com os jornalistas virem provar e eu esqueci-me de provar o vinho. (risos) Tive de improvisar. Mas disse-lhes que me tinha esquecido. Nessas coisas sou um livro aberto. Quando provei, constatei que era mesmo diferente, para melhor. Foi à frente dos jornalistas que o descrevi pela primeira vez. Diz-se que o vinho quer estabilidade, mas eu acho que não. O chocalhar no mar, o sal, as diferenças de temperatura, embora não sejam abruptas…tudo isso interfere. Já percebi, das várias experiências que fizemos, que duas travessias do Equador – ir e vir – faz o vinho evoluir à volta de 20 anos. Nas viagens mais longas, a evolução é talvez 30 a 40 anos. Não é na cor, mas na estrutura do vinho que há uma grande evolução.

Há concursos de vinhos no estrangeiro em que nos perguntam quanto estamos dispostos a pagar para nos darem um prémio.

Foi distinguido como "Personalidade do Ano no Vinho" pela Revista de Vinhos e acaba de ser eleito "Enólogo Vinhos Generosos do Ano", pela revista Vinho Grandes Escolhas. Os prémios são importantes para si?

Esses, pessoais, são. Fiquei surpreendido, não estava à espera dessas distinções. Fizeram-me voltar atrás e rever os principais momentos e as pessoas importantes que passaram pela minha vida. Os meus pais e o meu tio, os meus filhos… que não estiveram muito tempo comigo porque eu estava ausente meses e meses para aprender lá fora. Em geral, os prémios para os vinhos não me dizem nada. Há concursos no estrangeiro em que nos perguntam quanto estamos dispostos a pagar para nos darem um prémio. Não acredito em 99% dos concursos de vinhos lá fora. Mas nestes prémios que ganhei agora também foram distinguidos dois dos meus topo de gama, o Hexgon e o FSF, que é um vinho que fiz em memória do meu pai com as três castas de que ele mais gostava. Essas medalhas desses vinhos são importantes para mim. Fizeram-me sentir as palavras do meu pai, que nos disse: "Quero sair pela porta grande enquanto tenho cabeça." Estes prémios estão a indicar-me o caminho para sair pela porta grande.

 

Como imagina a sua vida depois de se reformar?

Enquanto tiver cabeça virei à sala de provas. Mas tenho muita coisa para me entreter na vida. Vou olhar pelas minhas vinhas, com a ajuda dos meus filhos. E assim que a pandemia acabar meto-me num avião e vou dar a volta ao mundo, para mostrar e dar a provar vinhos a olhar para o consumidor. Nas provas, o consumidor – seja profissional ou não – é muito envergonhado. Mas com experiência, se olharmos para a fisionomia, percebe-se perfeitamente se ele está a gostar ou não do vinho. Por muito bom que o marketing seja, é preciso ter contacto pessoal. Preciso de tentar perceber onde é que está a nova onda no consumo de vinhos. Conheço todos os países do novo mundo. Só me falta conhecer um – o Uruguai. Estou danado para lá ir.

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