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Congelar a maternidade

"Maria" e Elisa decidiram congelar ovócitos e adiar a maternidade. Uma é investigadora e espera emigrar dentro de pouco tempo. A outra ainda não encontrou "o homem certo" para pai dos seus filhos. O tema, quase desconhecido, provocou uma acesa discussão nas redes sociais quando as companhias Facebook e Apple anunciaram que iriam incluir a possibilidade de congelar ovócitos no pacote de benefícios das suas colaboradoras. Forma de pressão ou oportunidade?

31 de Outubro de 2014 às 14:01
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Sheryl Sandberg é considerada uma das 10 mulheres mais influentes do mundo. A directora de operações do Facebook está preocupada com o facto de poucas mulheres chegarem a cargos de liderança. No ano passado, publicou o livro "Lean In: Women, Work, and the Will to Lead" (ou, em português, "Faça Acontecer - Mulheres, trabalho e a vontade de liderar"), precisamente sobre este tema, que rapidamente se tornou num sucesso de vendas. Para esta executiva, muitas vezes são as próprias mulheres que travam a sua ascensão na carreira. "Ao longo da vida sempre me foi dito, e eu senti, que deveria conter a vontade de ser demasiado bem sucedida, demasiado inteligente, entre outras coisas", revelou Sheryl, numa entrevista ao programa "60 minutes", da cadeia de televisão norte-americana CBS.


A número dois do Facebook é casada e mãe de dois filhos. Defende que é possível conciliar a carreira com a vida familiar, orgulha-se de sair do escritório todos os dias às 17h30 e de ter tempo para a família. Mas sublinha que, para alcançar este equilíbrio, tem que existir uma verdadeira divisão de tarefas domésticas com o parceiro. Agora, a empresa que lidera, juntamente com a Apple, provocaram uma acesa discussão na praça pública. As duas empresas da área das tecnologias, sector ainda dominado por homens, oferecem-se para pagar as despesas relativas ao congelamento de ovócitos (as células reprodutoras femininas sua forma imatura) das trabalhadoras, se elas assim o desejarem. Uma forma de adiarem a maternidade e poderem dedicar-se ao trabalho sem a pressão do "relógio biológico", argumentam as tecnológicas.


No Facebook, este benefício já está em vigor desde Janeiro. Na Apple, começará a aplicar-se no próximo ano. A notícia levantou várias questões. Afinal, é ou não possível conciliar a progressão na carreira com a maternidade? Este benefício poderá funcionar como forma de pressão das empresas para as mulheres adiarem a maternidade ou, pelo contrário, pode ser um meio de "libertação do relógio biológico", ajustando-se, aliás, à própria realidade - as mulheres são mães cada vez mais tarde.


Face ao debate aceso nas redes sociais, a empresa fundada por Mark Zuckerberg veio esclarecer que a companhia também oferece outras regalias aos trabalhadores para tornar mais fácil a conciliação entre a vida profissional e a maternidade. Entre essas benesses, estão creches nas instalações da empresa, o direito a uma licença remunerada de quatro meses quando um bebé nasce ou quando uma criança é adoptada, juntamente com um cheque de quatro mil dólares (cerca de 3.100 euros).

 

 

No futuro, pode haver discriminação, não entre homens e mulheres, mas entre quem congelou e quem não congelou ovócitos.

Sandra Ribeiro, Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego

 


E o que pensam as empresas e as trabalhadoras portuguesas? Luís Bento, presidente da Associação Portuguesa de Gestão de Pessoas, considera que pagar para congelar ovócitos é "um atentado ético à liberdade da mulher" e revela "um total falhanço das políticas de conciliação entre trabalho e família", destas empresas. "A mulher continua a ser segregada na carreira profissional", afirma. E considera mesmo que se trata de "uma intromissão abusiva na vida íntima das pessoas". O especialista em recursos humanos defende ainda que a medida surge em contraciclo, uma vez que a grande discussão actual "no mundo ocidental civilizado é em torno da promoção da natalidade e não em torno do adiamento da maternidade".


"Está a fazer-se da maternidade um fenómeno extraordinário, quando é uma coisa natural", diz, em nome individual, a presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias, Anabela Pereira da Silva. Aquela que foi a "Executiva do Ano" 2012 da revista Máxima considera "ridícula" a discussão que, entretanto, se levantou em torno do tema. Não tem nada contra a decisão das empresas tecnológicas, uma vez que cada mulher tem o poder de decidir quando quer ser mãe. Trata-se de uma questão do foro individual. E dá o seu próprio exemplo. Foi mãe quando quis, aos 36 anos. Para ela, o enfoque da questão está errado. O ponto fundamental é: "porque é que as mulheres não estão nos lugares de poder, tanto na economia, como na política?". A resposta, diz, é: "porque ninguém lhes dá o poder". O acesso a esses lugares ainda é "muitíssimo difícil", afirma a empresária. Mas não considera que a questão tenha a ver apenas com a maternidade. Não se trata de um tema das mulheres, "é uma questão da sociedade". E, assim sendo, deixa uma pergunta: "porque é que só nós, as mulheres, temos este ónus?"


Empresas como a HUF Portuguesa e a Cisco, que fazem parte das companhias para trabalhar em Portugal em 2014, segundo o Instituto Great Place to Work, rejeitam a possibilidade de incorporar, como benefício, a possibilidade de as suas colaboradoras congelarem ovócitos para adiarem a maternidade, até porque, alegam, isso vai contra a sua filosofia. "Tem um 'cheirinho' a desrespeito pelos direitos humanos, a começar pelo direito à maternidade. Na nossa opinião, em países como Portugal, esta medida iria conduzir-nos, ainda mais, para o Inverno demográfico", respondeu fonte oficial da Huf, multinacional que produz componentes para automóveis. Também a Cisco não pretende implementar esta medida. A aposta desta empresa tecnológica, em termos de recursos humanos, passa "por oferecer flexibilidade horária a todos os colaboradores (tanto a mulheres como homens) para que possam equilibrar a sua vida pessoal e familiar com a vida laboral". Na TAP, o assunto "ainda não está suficientemente debatido". Por isso, a transportadora considera que qualquer tomada de posição seria "extemporânea".


O Negócios contactou várias outras empresas, algumas consideradas das melhores para trabalhar no País, assim como alguns bancos, empresas do PSI 20 e empresas públicas, mas não obteve resposta. A Confederação Empresarial de Portugal (CIP) optou por não comentar o assunto.


Alívio ou pressão?
A questão é "altamente complexa", diz Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego (CITE). Primeiro, explica, é preciso perceber se as mulheres estão a ser pressionadas para congelar ovócitos, directa ou indirectamente. Se a medida for isolada, se não existirem outros benefícios que favoreçam a maternidade, como, por exemplo, o pagamento de creches, a medida "é, claramente, uma pressão", afirma.


Para Sandra Ribeiro, o congelamento de ovócitos para adiar a maternidade não resolve o problema da desigualdade de género no mercado de trabalho. É apenas "um subterfúgio para enganar a natureza", uma solução tecnológica para o que, na verdade, é um problema de recursos humanos. "Contorna o problema mas não o resolve", considera.


A presidente da CITE levanta uma outra questão. Até que ponto é que, no futuro, estas medidas não poderão ser discriminatórias? "Não entre homens e mulheres, mas sim entre as próprias mulheres. Entre aquelas que congelaram ovócitos e aquelas que não congelaram", explica Sandra Pereira, acrescentando que este ponto "é altamente perverso". Ainda assim, não estranha que a medida possa agradar a algumas mulheres. De facto, sublinha, "já há mulheres que estão preparadas para tudo, com o objectivo de não serem prejudicadas no mercado de trabalho".

 


Uma luta contra o tempo
O tema é sensível. Mexe com a cabeça, com o coração e com o útero das mulheres. O peso de haver um "prazo de validade" para ser mãe angustia muitas mulheres. Por isso, o congelamento de ovócitos abriu uma janela de oportunidade. Em Portugal, o método ainda é pouco conhecido. Os médicos aconselham-no em casos de doença oncológica, nos quais a mulher será submetida a tratamentos de quimioterapia ou de radioterapia, e que põem em causa a sua fertilidade. Mas já começam a aparecer mulheres a procurar a técnica com outros motivos.


Maria (nome fictício) tem 37 anos e é investigadora na área da Biologia. Decidiu procurar uma clínica depois de ter ouvido falar nesta possibilidade numa conversa com amigos. O motivo que a levou a recorrer a esta técnica foi o facto de estar "entre empregos". Está em vias de partir para Nova Iorque. "Em termos de carreira, agora não me convém engravidar", diz a investigadora. O congelamento de ovócitos foi, para ela, "uma espécie de seguro contra a infertilidade". Tem parceiro e planeia ter filhos dentro de dois a três anos "pelas vias normais". Só se correr mal é que vai optar por descongelar os ovócitos. Agora não sente a pressão de ser mãe. "Foi um alívio", confessa.

 

 

A possibilidade de congelar os ovócitos é teoricamente muito libertadora, mas este método não deve ser encarado como uma garantia de uma futura gravidez mas sim como uma possibilidade.

Daniela Sobral, Especialista em Medicina da Reprodução

 


A história de Elisa Coelho é diferente. Tem 42 anos e ainda não encontrou o "homem certo". Desde sempre teve o sonho de ter um bebé e não quer deixar fugir a oportunidade de o realizar. "A minha decisão não teve nada a ver com trabalho", diz. Esta brasileira veio viver para Portugal há sete anos, onde trabalha no sector da publicidade. A mudança de país, juntamente com o facto de não ter a perspectiva de encontrar alguém com quem constituir família, levou-a a adiar a maternidade. Já fez duas recolhas de ovócitos. Uma em 2012 e outra em 2013. Ainda não perdeu a esperança de ter um filho de forma natural.


Óvulos "novos" em útero "velho"
Daniela Sobral, especialista em medicina da reprodução, deixa um alerta: "claro que a possibilidade de congelar os ovócitos é teoricamente muito libertadora para algumas mulheres, mas este método não deve ser encarado como uma garantia de uma futura gravidez, mas sim como uma possibilidade", sublinha.


Uma opinião partilhada por Miguel Oliveira da Silva. O presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida explica que as probabilidades de engravidar cinco anos depois, "se o esperma do marido for bom e fresco", são de 30%, no máximo. O médico deixa o aviso de que as terapêuticas de estimulação hormonal "não são inócuas" e aumentam, por exemplo, o risco de cancro da mama.


A técnica consiste em retirar, cirurgicamente, os ovócitos dos ovários após uma estimulação hormonal, através do recurso a medicamentos injectáveis. A resposta dos ovários a estes medicamentos é variável e é controlada com ecografias e análises. Esta recolha é efectuada por via vaginal e, geralmente, com sedação. Depois, os ovócitos são congelados. Quando a mulher decidir que chegou o momento de tentar uma gravidez, os ovócitos são descongelados e fertilizados através de uma fertilização in vitro. São clínicas privadas que, neste momento, estão a fazer este procedimento médico em Portugal. O custo ronda os três mil euros. Um valor que não está ao alcance de todas as mulheres.


Na Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução, o assunto ainda não foi debatido. A presidente da entidade, Ana Teresa Almeida Santos, disse ao Negócios que está agora a decorrer um inquérito aos sócios para perceber quem já está a realizar a chamada técnica da "vitrificação", que permite congelar a célula em poucos minutos, sem a danificar. Pessoalmente, a especialista, critica o recurso à técnica para adiar a maternidade. "A gravidez depois dos 35 anos acarreta riscos para a mãe e para o filho", afirma. Ana Teresa Almeida Santos considera que o anúncio da Apple e do Facebook "não deixa de ser publicidade". Por isso, acredita que a procura pela técnica vai aumentar. "Até sair esta notícia, não se falava disto em Portugal", refere.

 

 

Isto significa que estas empresas estão a demonstrar um total falhanço das políticas de conciliação entre trabalho e família.

Luís Bento, Presidente da Associação Portuguesa de Gestão de Pessoas

 


E existem também incógnitas quanto ao pós-descongelamento. "Dado o número reduzido de crianças nascidas como resultado da utilização de ovócitos criopreservados, e apesar de aparentemente não existir risco acrescido de anomalias fetais, deveremos manter-nos atentos quanto ao desenvolvimento destas crianças", alerta a médica Daniela Sobral. Por outro lado, refere a especialista, quanto mais velha for a mulher, maiores complicações pode ter a gravidez. Depois dos 35 anos, aumenta o risco de ter diabetes gestacional e hipertensão, com maiores riscos cardiovasculares.


"Há todas as vantagens biológicas em ser mãe cedo", sublinha, também, Miguel Oliveira da Silva. O presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida explica que "está provado cientificamente que ter o primeiro filho antes dos 28 anos reduz entre 30% e 33% o risco de cancro da mama". Por isso, considera que esta técnica só se justifica "por motivos graves de doença oncológica". "As mulheres têm que ter filhos novas, não é quando são velhas", sublinha. Até porque, "a partir dos 35 anos, 20% a 25% das mulheres têm miomas no útero", o que vai dificultar a gravidez.


Por isso, Luís Bento, da Associação Portuguesa de Gestão de Pessoas, levanta outra questão. Uma mulher que decida aderir a este método para daqui a 10 anos ter uma carreira estabilizada e poder procriar pode sair defraudada. Isto porque o congelamento de ovócitos "não garante a progressão na carreira e não garante que (nessa altura) ela estará em condições de saúde para ter uma criança".


Certo é que a notícia, que tanta polémica gerou, teve uma virtude. Levantou o tema da fertilidade feminina e permitiu que fossem divulgadas as várias possibilidades que as mulheres têm ao seu dispor para realizar o sonho de terem um bebé sem prescindir da carreira profissional.

 

 

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