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Carmen Souza: "Nós, como músicos, acreditamos naquilo que não vemos"

Tentam classificá-la, identificá-la, colocá-la no rótulo da música cabo-verdiana, música portuguesa, world music, jazz, mas ela fica mais contente se, quando a ouvirem, disserem apenas que estão a ouvir Carmen Souza. Este sábado estará na Casa da Música.

Miguel Baltazar
11 de Novembro de 2016 às 14:00
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Carmen Souza vive em Londres, uma cidade boa para viajar para outras cidades. Passa tanto tempo em palco, com Theo Pascal - com quem faz música desde que começou a fazer música -, que são poucos os momentos em casa. Mas casa talvez seja qualquer lugar ou qualquer momento em que, com Theo, faz mais uma música. Sente-se bem quando habita um lugar invisível: das músicas que ainda nem nasceram. Nesse sentido, diz que, como todos os artistas, só pode viver de fé. Nasceu em Portugal, filha de cabo-verdianos de Santo Antão. Tentam classificá-la, identificá-la, colocá-la no rótulo da música cabo-verdiana, música portuguesa, world music, jazz, mas ela fica mais contente se, quando a ouvirem, disserem apenas que estão a ouvir Carmen Souza. Este sábado estará na Casa da Música, no Porto.

1. Cada vez mais, nas "tournées", passo por sítios remotos, por exemplo, da Alemanha, e vêm pessoas dizerem-me que percorreram a ilha dos meus pais de lés a lés a fazer "trekking". É muito interessante. Encontro pessoas que ficaram apaixonadas por Cabo Verde e às tantas já estão a falar crioulo.
A ilha dos meus pais é Santo Antão, a ilha mais verde. A primeira vez que fui a Cabo Verde devia ter uns dez anos: fui de férias, conhecer finalmente a terra dos meus pais e fiquei encantada. Depois, voltei lá para apresentar o meu trabalho, a minha música.

2. A música é o maior "export" das ilhas de Cabo Verde. Então, a música cabo-verdiana tem andado pelo mundo.
Muitas pessoas identificam-me como música cabo-verdiana mas depois, quando ouvem, dizem: ah, mas não é realmente música cabo-verdiana. Identificam-me quase sempre como "nova música" de Cabo Verde. Mas posso estar no "rótulo" "nova música" de Cabo Verde e depois também posso ir ao Festival de Jazz do Cairo representar Portugal, como portuguesa.
A nossa música tem várias influências. E é um bocadinho difícil reduzir a um formato. Se formos a uma Fnac e metermos este rótulo todo: jazz, Cabo Verde, lusofonia, world music, é um bocadinho difícil...
O Horace Silver, um grande pianista americano, que tinha as suas raízes em Cabo Verde, mas viveu desde sempre nos Estados Unidos e desenvolveu aí a sua música, dizia que quando ouvimos o Miles na rádio, nós não dizemos que aquilo é jazz, dizemos que é o Miles. Quando ouves um Thelonious Monk, é o Thelonious Monk. E o Horace Silver dizia que queria que quando as pessoas o ouvissem na rádio dissessem: isto é o Horace Silver, em vez de dizerem que é jazz ou funk ou seja o que for. Acho que deveria ser assim.

3. Tinha vontade de cantar desde sempre. Desde que me lembro. O meu pai tocava guitarra. Desde pequenina, frequentava uma igreja e havia lá um piano e eu era fascinada por esse piano. Tudo o que envolvia música despertava-me curiosidade.
Quando eu tinha 17 ou 18 anos, já o Theo [Pascal] era um músico conhecido aqui em Portugal. Eu fui fazer uma audição para um projecto do qual ele era director musical, e foi a partir daí que começámos a trabalhar juntos.
Toda a minha carreira foi feita com o Theo. Aliás, a culpa é dele, porque na altura eu até não tinha muita certeza daquilo que queria fazer. Estava a estudar línguas: tradução de inglês e alemão. E ele disse-me: devias realmente seguir música.

4. Na altura, o projecto que nos juntou era um coro de gospel. Como cresci na igreja, esse era um estilo musical que eu estava habituada a ouvir e a cantar. O que retenho do gospel, hoje em dia, é essencialmente a mensagem: é aquilo que me guia. Faz parte do nosso carácter. Porque nós vivemos de fé. Nós, como músicos, acreditamos naquilo que não vemos. Todos os dias trabalhamos numa música que não existe, numa pauta que está em branco. E acreditamos muito na nossa música: a nossa música, que a gente toca, mas não vê. Esse acreditar, durante estes 15 anos todos, é o que tem feito este projecto andar para a frente. É muito investimento, é muito acreditar, muito risco, mas é isso que nos mantém vivos. E é isso que transpomos para a nossa vida diária: acreditar em nós próprios. Acreditar naquilo que não se vê. Continuar a acreditar naquele desejo que temos, lá dentro de nós, de criar.

5. Sou eu que faço as letras. Normalmente, as nossas mensagens surgem de conversas, de histórias, porque vivemos tão intensamente nesta vida de andar de um lado para o outro, de um palco de um país para o palco de outro país. Pode vir a partir de um artigo que lemos num jornal, pode vir de um "sound check", de uns acordes que de repente surgiram e cria-se uma música à volta daquilo.
Normalmente, o Theo surge com uma linha melódica, um tema que tem estado a construir e aquela linha melódica parece-me que já tem palavras. E a letra surge assim.

6. Cada disco representa capítulos da nossa história, capítulos da nossa vida. O "Epístola" vivia de quatro músicos em palco, em que falávamos de várias coisas, vários temas. Era um disco que vivia de histórias, de sabores, de cores e em que havia um diálogo constante, havia uma interacção muito grande entre quatro pessoas. Continua a haver interacção no próximo disco que vamos lançar, agora em trio, mas, neste, prezamos mais o silêncio e damos valor a cada nota. Às vezes, é quase aquele sentimento: de ouvir, mas não ser preciso falar. É só preciso sentir o momento.
O disco está programado sair entre Fevereiro e Abril. França, Espanha, Alemanha e Itália serão os primeiros territórios. Todo este trabalho vive de uma estratégia de vários parceiros no mundo inteiro, que trabalham todos como uma equipa e estão em contacto uns com os outros. Isso é algo que leva tempo a construir. E é algo muito importante para um artista: estar rodeado de pessoas que compreendem e abraçam a música e estão dispostas a fazer algo por ela. Nós sentimo-nos abençoados por conseguirmos reunir essas pessoas. 


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