Notícia
Carlos “Zíngaro”: Enquanto desenho ou pinto, ninguém olha para mim
Conhecido como músico experimental e de free jazz, Carlos “Zíngaro” sempre fez desenho, banda-desenhada, pintura. Um trabalho que pode ser visto na Casa da Liberdade - Mário Cesariny, em Lisboa.
Ao contrário da música, tocada ao vivo, ou composta para ser apresentada em espectáculos, quando se pinta não há aplausos, pelo menos não imediatamente. Conhecido como músico experimental e de free jazz - e como um dos mais importantes compositores portugueses -, Carlos "Zíngaro" sempre fez desenho, banda- -desenhada, pintura. É algo que acontece nos momentos de espera antes dos concertos, nos momentos de solidão sem colegas nem espectadores. É um trabalho que surge de uma intimidade e que pode ser visto até 10 de Setembro na Casa da Liberdade - Mário Cesariny, em Lisboa. Diz que a sua música e a sua arte visual não se relacionam muito, mas a verdade é que se vê, nas suas imagens, o improvisador, o "zíngaro", a criança deslumbrada que teimava em encontrar o seu jeito de tocar, uma forma fora dos limites impostos.
1. Um dia antes da inauguração desta exposição, finalmente vi três anos de trabalhos assim, todos juntos. O meu estúdio é pequeno. Acabo um trabalho, vai para o canto. Acabo outro, vai para o canto. E não tenho oportunidade de ver isto assim em espaço aberto. Mas é claro que olhei para muitos dos trabalhos e pensei: agora não fazia isto desta maneira. Agora, relaciono-me com o que pintei nos últimos dois ou três meses, talvez no último ano. Sou muito crítico perante mim próprio. Na música também.
Se vou ouvir os discos que fiz há alguns anos, começo a encontrar defeitos, erros, e apetece-me fazer outra vez. Então, não ouço. Mas depois acontecem situações caricatas. Uma vez estava com uns amigos num bar e a certa altura comecei a ouvir um jazz com violino e pensei: conheço isto vagamente. Virei-me para uns amigos e perguntei quem era: gáudio total, porque era eu.
Quando era mais novo, era ainda mais picuinhas no desenho e na pintura. Às vezes, tinham que ser outras pessoas a dizer-me para parar, porque ficava ali agarrado obsessivamente. É muito estranho o trabalho acabado. Eu gosto do processo.
Apesar de toda a tecnologia que utilizo, principalmente na música, continuo a tocar violino. No desenho, uso Photoshop, Illustrator e outros programas, mas continuo a adorar o óleo, o carvão, a adorar ficar todo borrado: gosto de ter as mãos na massa.
Acabo uma tela ou um desenho no papel e sei que vou começar a elucubrar alegremente, sem fim à vista, sem um motivo, sem um "deadline", sem uma encomenda: porque me dá gozo.
2. O meu pai era funcionário público por necessidade, mas era pintor, desenhador e fotógrafo. Desde que me conheço que desenho, porque comecei logo a imitar o meu pai.
O meu pai também tinha sido músico: frustrado. Um amigo dele, que era crítico do Diário de Notícas, reparou em mim aos quatro anos e disse-lhe: o miúdo tem ouvido, acho que o devias pôr a estudar música.
A única instituição, na época, que aceitava miúdos daquela idade - e ainda existe - era a Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Quando cheguei lá, a directora perguntou: "O que é que o menino gostaria de tocar?" E eu: "tambor e corneta". Pois claro, com quatro anos. Então, meteram-me um violino nas mãos.
Durante muitos, muitos anos tive uma relação de amor e ódio com o violino: a malfadada rabeca. É um instrumento que não é ergonómico. O piano é simétrico. Até o violoncelo, que fica à frente do corpo. O violino coloca-se assim para o lado. Mas o problema também era o ensino que se ministrava em Portugal na época. Portanto, a guerra de amor e ódio com o violino era também a guerra de amor e ódio com a música clássica. Era a esclerose. Só se podia ouvir e praticar determinada música. O Bartók era considerado inaudível na altura, para não falar de coisas mais contemporâneas: nem pensar no Xenákis ou no Stockhausen.
Em casa, não tínhamos gira-discos e a música ouvia-se no rádio. Comecei a tocar em frente ao rádio, a improvisar com o nacional cançonetismo. O rádio captava um pouco das rádios berberes do Norte de África e eu adorava aquelas melopeias norte-africanas. E, um dia, descobri a música húngara, magiar.
É daí que vem a alcunha "Zíngaro". Eu passava o tempo em casa a não estudar os estudos clássicos e a aprender a tocar improvisando com o que ouvia no rádio e, quando chegava para interpretar a peça que tinha sido mandada pelo professor, inevitavelmente, em vez de tocar como devia - "ti-pá" - tocava um "piii-á", com um jeito de música cigana. E o professor dizia: "Estás a tocar como um zíngaro, isso não vale." E toda a gente me começou a chamar "Zíngaro". "Zíngaro" era um termo pejorativo, claro, e tentei libertar-me dele. Até que um dia chego a casa, tinha para aí doze anos, e a minha mãe estava ao telefone com um amigo meu e disse: "Olha, o Zíngaro acabou de chegar." Até a minha mãe. Aí desisti. Fiquei "Zíngaro".
3. Aos 16, 17 anos abandonei a música clássica e comecei a tocar rock, pop, blues. Constituí um grupo: o Plexus.
Depois, há o corte da tropa, de cumprir o dever de salvaguardar os interesses da nação. Estive em Angola, e quando regressei, em 73, volto a reavivar o Plexus, mas aí, com um lado de revolta acesa pelo que eu tinha passado, pelo que eu tinha visto, pelo que eu tinha sentido. Aí, é o jazz, o free jazz: é o grito, o grito de revolta, mas quase impotente porque em 73 ainda era o regime.
Quando vem o 25 de Abril, a música que eu fazia podia não ter um tema definido mas era vista como música revolucionária e toquei com muitos músicos de intervenção: o Zeca, o Sérgio... No período do PREC, o Plexus foi entendido, porque era uma expressão de revolta. Mas esse período passou rapidamente. E voltei a ser o tipo que faz música esquisita. Felizmente, comecei a tocar lá fora.
4. Passei tempo em Nova Iorque, em 79, numa residência e com uma bolsa Fulbright. O ambiente era fascinante, realmente excitante. Senti-me tentado a ficar, mas voltei.
Não gostava muito - e não gosto - da competição. Na América, de uma maneira geral, e em Nova Iorque, em particular, era uma competição desenfreada. Com amigos e colegas de profissão, as conversas andavam à volta de: How can you make it? Are you really making it?
De qualquer forma, é um facto que, anos mais tarde, muitas vezes me perguntei: e se eu tivesse ficado, o que é que teria acontecido? Fazemos sempre estas conjunturas: se tivesse ido pelo caminho da direita em vez da esquerda, o que é que teria acontecido? São aquelas bifurcações da vida.
5. Faço concertos há décadas. Estou habituado e aprecio ir para a frente do público tocar, mas há sempre aquele stress da situação pública, nunca deixa de haver.
Ando sempre com um "sketchbook" no bolso. Enquanto espero nos aeroportos, nos hotéis, nos ensaios, estou sempre a desenhar. Acalma-me. Enquanto desenho ou pinto, ninguém olha por cima do meu ombro ou à minha frente. A música tem sido o lado público. Isto, é o lado íntimo.
1. Um dia antes da inauguração desta exposição, finalmente vi três anos de trabalhos assim, todos juntos. O meu estúdio é pequeno. Acabo um trabalho, vai para o canto. Acabo outro, vai para o canto. E não tenho oportunidade de ver isto assim em espaço aberto. Mas é claro que olhei para muitos dos trabalhos e pensei: agora não fazia isto desta maneira. Agora, relaciono-me com o que pintei nos últimos dois ou três meses, talvez no último ano. Sou muito crítico perante mim próprio. Na música também.
Se vou ouvir os discos que fiz há alguns anos, começo a encontrar defeitos, erros, e apetece-me fazer outra vez. Então, não ouço. Mas depois acontecem situações caricatas. Uma vez estava com uns amigos num bar e a certa altura comecei a ouvir um jazz com violino e pensei: conheço isto vagamente. Virei-me para uns amigos e perguntei quem era: gáudio total, porque era eu.
Quando era mais novo, era ainda mais picuinhas no desenho e na pintura. Às vezes, tinham que ser outras pessoas a dizer-me para parar, porque ficava ali agarrado obsessivamente. É muito estranho o trabalho acabado. Eu gosto do processo.
Apesar de toda a tecnologia que utilizo, principalmente na música, continuo a tocar violino. No desenho, uso Photoshop, Illustrator e outros programas, mas continuo a adorar o óleo, o carvão, a adorar ficar todo borrado: gosto de ter as mãos na massa.
Acabo uma tela ou um desenho no papel e sei que vou começar a elucubrar alegremente, sem fim à vista, sem um motivo, sem um "deadline", sem uma encomenda: porque me dá gozo.
O meu pai também tinha sido músico: frustrado. Um amigo dele, que era crítico do Diário de Notícas, reparou em mim aos quatro anos e disse-lhe: o miúdo tem ouvido, acho que o devias pôr a estudar música.
A única instituição, na época, que aceitava miúdos daquela idade - e ainda existe - era a Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Quando cheguei lá, a directora perguntou: "O que é que o menino gostaria de tocar?" E eu: "tambor e corneta". Pois claro, com quatro anos. Então, meteram-me um violino nas mãos.
Durante muitos, muitos anos tive uma relação de amor e ódio com o violino: a malfadada rabeca. É um instrumento que não é ergonómico. O piano é simétrico. Até o violoncelo, que fica à frente do corpo. O violino coloca-se assim para o lado. Mas o problema também era o ensino que se ministrava em Portugal na época. Portanto, a guerra de amor e ódio com o violino era também a guerra de amor e ódio com a música clássica. Era a esclerose. Só se podia ouvir e praticar determinada música. O Bartók era considerado inaudível na altura, para não falar de coisas mais contemporâneas: nem pensar no Xenákis ou no Stockhausen.
Em casa, não tínhamos gira-discos e a música ouvia-se no rádio. Comecei a tocar em frente ao rádio, a improvisar com o nacional cançonetismo. O rádio captava um pouco das rádios berberes do Norte de África e eu adorava aquelas melopeias norte-africanas. E, um dia, descobri a música húngara, magiar.
É daí que vem a alcunha "Zíngaro". Eu passava o tempo em casa a não estudar os estudos clássicos e a aprender a tocar improvisando com o que ouvia no rádio e, quando chegava para interpretar a peça que tinha sido mandada pelo professor, inevitavelmente, em vez de tocar como devia - "ti-pá" - tocava um "piii-á", com um jeito de música cigana. E o professor dizia: "Estás a tocar como um zíngaro, isso não vale." E toda a gente me começou a chamar "Zíngaro". "Zíngaro" era um termo pejorativo, claro, e tentei libertar-me dele. Até que um dia chego a casa, tinha para aí doze anos, e a minha mãe estava ao telefone com um amigo meu e disse: "Olha, o Zíngaro acabou de chegar." Até a minha mãe. Aí desisti. Fiquei "Zíngaro".
3. Aos 16, 17 anos abandonei a música clássica e comecei a tocar rock, pop, blues. Constituí um grupo: o Plexus.
Depois, há o corte da tropa, de cumprir o dever de salvaguardar os interesses da nação. Estive em Angola, e quando regressei, em 73, volto a reavivar o Plexus, mas aí, com um lado de revolta acesa pelo que eu tinha passado, pelo que eu tinha visto, pelo que eu tinha sentido. Aí, é o jazz, o free jazz: é o grito, o grito de revolta, mas quase impotente porque em 73 ainda era o regime.
Quando vem o 25 de Abril, a música que eu fazia podia não ter um tema definido mas era vista como música revolucionária e toquei com muitos músicos de intervenção: o Zeca, o Sérgio... No período do PREC, o Plexus foi entendido, porque era uma expressão de revolta. Mas esse período passou rapidamente. E voltei a ser o tipo que faz música esquisita. Felizmente, comecei a tocar lá fora.
4. Passei tempo em Nova Iorque, em 79, numa residência e com uma bolsa Fulbright. O ambiente era fascinante, realmente excitante. Senti-me tentado a ficar, mas voltei.
Não gostava muito - e não gosto - da competição. Na América, de uma maneira geral, e em Nova Iorque, em particular, era uma competição desenfreada. Com amigos e colegas de profissão, as conversas andavam à volta de: How can you make it? Are you really making it?
De qualquer forma, é um facto que, anos mais tarde, muitas vezes me perguntei: e se eu tivesse ficado, o que é que teria acontecido? Fazemos sempre estas conjunturas: se tivesse ido pelo caminho da direita em vez da esquerda, o que é que teria acontecido? São aquelas bifurcações da vida.
5. Faço concertos há décadas. Estou habituado e aprecio ir para a frente do público tocar, mas há sempre aquele stress da situação pública, nunca deixa de haver.
Ando sempre com um "sketchbook" no bolso. Enquanto espero nos aeroportos, nos hotéis, nos ensaios, estou sempre a desenhar. Acalma-me. Enquanto desenho ou pinto, ninguém olha por cima do meu ombro ou à minha frente. A música tem sido o lado público. Isto, é o lado íntimo.