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Carlos Gaspar: A crise do centro político europeu está em aberto

O momento dificilmente poderia ser mais oportuno. Em plena discussão sobre o futuro da Europa, o antigo conselheiro dos presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio publica o livro "A Balança da Europa". É preciso conhecer a História para melhor preparar o futuro. Partindo das duas Grandes Guerras do século passado, o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa realça depois o apogeu atingido pelo projecto europeu que, sinais dos tempos, vive uma fase de declínio. Porém, este declínio não é inexorável.

Miguel Baltazar
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Almeida Garrett escreveu "Portugal na balança da Europa" quando o país vivia tutelado pelas regras ditadas pela Santa Aliança. O actual grau de integração europeia implica que já não faça sentido pensar em Portugal na balança europeia?

Ainda faz. Tanto no tempo de Garrett como durante o século XX, ou hoje em dia, há sempre uma balança da Europa. A grande diferença é que, entre o século XIX e o nosso tempo, a balança da Europa era a balança internacional.

 

O eurocentrismo…

A balança da Europa é uma balança regional desde 1945. Os Estados Unidos e a União Soviética são os verdadeiros vencedores da II Guerra. Os três países que definem a balança regional – Grã-Bretanha, França e Alemanha – estão numa segunda linha.

 

A Europa está condenada a esse estatuto? Ou a progressiva integração na União Económica e Monetária (UEM) e na Defesa, a ideia federalista, pode determinar a União Europeia como potência mundial?

A UE, mesmo com uma forte integração nos domínios económico e monetário, da circulação e da emigração, continua a ser uma união de Estados e não uma união federal. Uma união que soube inventar um modelo multilateral único, que a distingue.

 

Ainda incompleto?

Este modelo multilateral serve os Estados, preserva a sua soberania, autonomia e identidade. Dos grandes e dos pequenos. A UE e a Aliança Atlântica servem ao mesmo tempo para impedir a hegemonia germânica e para integrar os pequenos Estados como a Holanda, Portugal ou Espanha. Tem essas duas funções e só se pode realizar se for uma união de Estados.

 

No livro, faz referência à transformação da Europa, sinaliza o apogeu do projecto europeu seguido de crises que causaram o declínio. É inexorável este rumo?

Em parte, o declínio da Europa Ocidental começa com o ciclo das grandes guerras do século XX. Podemos dizer que se trata de um declínio moderado e relativo, menos acentuado do que podia ter sido, tendo em conta a brutalidade da II Guerra e a violência resultante da ruptura provocada pela Guerra Fria, que dividiu a Europa ao meio. A Europa soube reconstruir-se em 1945 e reinventar-se depois de 1991. Se permanecer fiel aos seus valores, pode perdurar.

 

Do eurocentrismo ao bipolarismo, do mundo unipolar ao assimétrico, do retraimento dos EUA ao revisionismo da Rússia e à emergente China. Esta evolução não significa um declínio progressivo para a Europa?

O declínio relativo é inexorável. Mas declínio não é decadência, não é o fim da história, nem é progressivo, é flutuante. Pode é ser mais ou menos acentuado. Não é um estado irreversível. Mas mesmo que a Europa ocidental consiga recuperar o terreno perdido nesta crise prolongada, desde pelo menos 2008, tal não significa que volte a ser o centro da política internacional.

 

Se a Europa permanecer fiel aos seus valores, pode perdurar.  

 

O crescimento dos extremos, da direita no Leste e Norte, e da esquerda no Sul, e o desgaste do centro político, visível também na Alemanha, podem levar a uma recomposição da balança de poder europeia?

Isso não é evidente, mas é preciso perceber o que vai suceder do ponto de vista da organização política e o que vai resultar da recomposição do centro político. Não sabemos bem o que vai ser o próximo centro político, nem quanto tempo vai demorar a reconstituir-se. Temos o caso de Itália, onde a democracia-cristã, tal como o seu parceiro, o Partido Comunista Italiano, deixou subitamente de existir depois da Guerra Fria. Não houve uma recomposição estável do sistema político italiano.

 

Teme um cenário de "italianização" da política europeia?

Espero que isso não aconteça porque os italianos têm um génio político que os alemães não têm. São capazes de viver num sistema instável. É uma questão em aberto: o que é que vai ser o centro político europeu, como é que se vai reconstituir e quanto tempo vai demorar a ser feito.

 

Poderá reconquistar relevância?

É difícil. Esta dupla hegemonia de sociais-democratas e democratas-cristãos sobreviveu miraculosamente ao fim da Guerra Fria. Era uma divisão muito marcada pelas clivagens políticas. A pressão externa da União Soviética obrigava os responsáveis europeus a focarem-se na estabilidade interna. Isso fez convergir duas forças políticas que, à partida, têm matrizes ideológicas e históricas muito diferentes.

 

Essa reconfiguração vai assentar na dicotomia europeístas/antieuropeístas?

É uma das indicações que nos dá a situação actual. A força dos movimentos antieuropeístas de esquerda e de direita é cada vez maior, e os europeístas mais tradicionais têm cada vez menos votos. Não só nas periferias, mas nos três principais países europeus, os tais que definem a balança da Europa. Embora as transformações não sejam todas iguais em termos formais, vão no mesmo sentido político. A democracia­-cristã alemã e o Partido Social Democrata (SPD) tinham 90% dos votos no Bundestag. Agora têm menos de 50%. Em França, a alternância entre socialistas e republicanos pertence ao passado e, pela primeira vez, há um Presidente independente.

 

Que fulminou o "centrão" tradicional.

Destruiu o centro político e aparentemente reconstituiu-o com um partido europeísta.

 

Este deslassar do centro mostra que a crise não foi totalmente suplantada?

O problema ainda não está resolvido. A crise do centro político europeu está em aberto e garante-nos que a crise, que começou em 2008 entre a ressurgência da Rússia, a crise financeira internacional e o retraimento americano, ainda não chegou ao fim. Não está resolvida porque há esta degradação do centro político europeu nos principais países da Europa.

 

Como pode a Europa recuperar centralidade com Merkel tão fragilizada?

Não tem outro remédio.

 

Mas são precisos actores…

Certamente, mas presumir que a chanceler alemã ou o Presidente francês se vão tornar numa espécie de heróis e resolver o problema europeu é entrar pela porta errada. O mais importante é mobilizar politicamente as comunidades europeias e nacionais. E recuperar os valores da liberdade e do direito que fazem da Europa o que ela é. É também preciso ter maior consciência das vulnerabilidades estratégicas, o que exige maior capacidade de acção comum e multilateral no domínio da segurança e da defesa.


 

A Defesa comum europeia devia ser uma prioridade?

A Defesa comum europeia não tem de ser uma comunidade europeia de Defesa como nos anos 1950. O falhanço da união europeia de Defesa é um falhanço definitivo. É necessário que as principais potências europeias tenham capacidade para projectar a segurança, inclusivamente com intervenções militares externas no seu estrangeiro próximo. Precisam da NATO para equilibrar a potência russa, para manter uma aliança estrutural das democracias ocidentais, e precisam da Defesa europeia, qualquer que seja o seu quadro, para responder às crises periféricas.

 

O Brexit pode ser o mote para superar a tal crise que dura há 10 anos?

Não há alternativa à concertação entre as três principais potências europeias. As pessoas que pensam que a saída da Grã­-Bretanha vai permitir um salto em frente na integração europeia estão enganadas. Com o Brexit, a UE não vai dar um salto em frente, pode é dar um salto para trás, ter uma regressão nacionalista e uma dinâmica de fragmentação, sobretudo se a saída britânica resultar numa ruptura entre a Grã-Bretanha e a Europa continental. O Brexit torna a União mais fraca em todas as dimensões, designadamente na sua projecção internacional e na capacidade de Defesa e de segurança.

 

O Brexit é mesmo um dado adquirido? Tony Blair propõe um novo referendo.

Enganam-se também aqueles que pensam que a Grã-Bretanha não vai sair da UE. Vai sair. A prioridade para países como Portugal, para quem a escolha entre uma Europa atlântica e uma Europa continental é uma escolha impossível, é fazer tudo o que for possível para impedir que o_Brexit resulte numa ruptura entre o Reino Unido, França e a Alemanha.

 

O que parece difícil. Ainda agora o acordo que permite passar à segunda fase das negociações foi arrancado a ferros.

Não vai deixar de ser difícil. E não há boas razões para se ser optimista sobre a evolução das negociações. Tanto mais que, para lá da sua complexidade, há forças dos dois lados que querem a ruptura. Quem pode impedir, e impediu no passado, a ruptura foram os EUA.

 

Trump rejubilou com o Brexit.

Na melhor hipótese, os EUA estão de férias. Na pior, estão a favor das forças que, do lado britânico e de certa maneira do lado da Europa continental, querem uma ruptura, enfraquecer a UE e a Aliança Atlântica.

 

Na cimeira europeia em curso, está previsto discutir a chamada reforma Macron que, em certa medida, estava consensualizada com Merkel…

A minha impressão é que houve sempre grande relutância do lado da chanceler.

 

Merkel parecia disponível para o orçamento comum e um ministro das Finanças para o euro, mas não tanto para um Parlamento na Zona Euro.

O orçamento comum não está em causa, mas sim o peso e capacidade financeira do orçamento comum. Existir um ministro das Finanças nem sequer é uma boa ideia.

 

É determinante reforçar a integração e criar mecanismos para conter choques assimétricos?

É preciso reformar o modelo de governo da moeda única europeia. E consolidar quer a sua capacidade de resposta às crises financeiras, quer a sua capacidade para garantir a convergência económica no espaço europeu. Não há integração económica sem convergência. Pode haver interrupções, variações, períodos de regressão, mas a tendência geral tem de ser a convergência económica. Isso é uma condição existencial do processo de integração.

 

É isso que defende Macron.

Sim, e aparentemente é o que defende também o SPD, que pode ser forçado a regressar a uma grande coligação.

 

A eventual coligação da CDU de Merkel com o SPD, que tem posições próximas às de Macron e às do Governo português sobre o futuro da Europa, pode favorecer esse reforço da integração?

Com certeza. Embora a repetição da grande coligação não seja uma demonstração de força do lado da Alemanha. É, pelo contrário, levar até ao limite uma coligação politicamente esgotada, que já fez o seu caminho, e adiar por um ano ou dois novas eleições no país.

 

É muito importante a posição de Mário Centeno. O presidente não vai definir a agenda do Eurogrupo, mas não é possível definir a agenda contra o presidente. 

 

É possível chegar ao Conselho Europeu de Junho com algum trabalho feito na reforma da Zona Euro?

Se existir grande coligação na Alemanha, pode haver avanços no bom sentido. Neste momento, a grande coligação cria as melhores condições possíveis para fazer avançar a reforma da UEM. É preciso robustecer a capacidade do euro para responder às próximas crises financeiras e consolidar as condições de convergência.

 

Que papel pode ter Mário Centeno como presidente do Eurogrupo? Pode favorecer a tese de políticas conciliadoras da consolidação orçamental com medidas de crescimento e maior inclusão?

É muito importante a posição do presidente do Eurogrupo. O presidente não define a agenda do Eurogrupo, mas não é possível defini-la contra o presidente.

 

Dijsselbloem é trabalhista e mostrou-se tão ou mais inflexível do que Schäuble durante a crise grega. É esta a regra ou uma excepção?

Ainda teremos de voltar aos últimos anos para perceber que, sem a intervenção decisiva de França, a Grécia teria sido expulsa do euro e, eventualmente, outros países.

 

Ficava o núcleo duro?

Exactamente. Esse risco continua a existir, não desapareceu. A crise grega não desapareceu. Nem o bloco dos credores. As forças que querem expulsar a Grécia não deixaram de existir. Também por isso é importante demonstrar que as forças da integração prevalecem na Zona Euro.

 

Mas é bom para Portugal, e respectiva agenda política, a eleição de Centeno?

Seguramente. E também para a agenda política europeia, no sentido de demonstrar a capacidade de integração da Europa.

 

Essa capacidade de integração está a ser posta em causa pelas sistemáticas violações do Estado de Direito em países como a Polónia e a Hungria?

O primado do Estado de Direito é a identidade da União. O primado da política é pormos a política no posto de comando. A partir daí é possível fazer parte das coisas. Se o primado da política não existe, a construção europeia fica paralisada pela incapacidade de compatibilizar interesses diversos em termos estritamente funcionais.

 

É possível compatibilizar esses interesses com tantas forças desagregadoras?

A harmonia dos interesses é um mito. Os Estados têm interesses divergentes entre si. Ou a política consegue pôr ordem nessa arrumação ou prevalece a divergência e uma tendência de fragmentação, que é tanto mais forte quanto mais fortes são os partidos nacionalistas de esquerda e de direita e quanto mais fracas forem as forças centristas tradicionais que construíram a Europa no passado.

 

A solução pode passar por uma "fortaleza kantiana" num "mundo hobbesiano", uma Europa liberal num mundo iliberal?

Não. Maquiavel explicava que as fortalezas não servem para nada. E isso ainda é verdade. A última vez que alguém quis fazer da Europa uma fortaleza foi no Terceiro Reich, e acabou mal. Mesmo uma fortaleza com valores tão admiráveis como os kantianos não serve para nada. Aquilo que distingue a Europa ocidental de todos os outros espaços continentais é o génio universalista. Que não se pode realizar dentro de uma fortaleza.

 

Não há alternativa ao multilateralismo?

Em primeiro lugar, há um espírito cosmopolita inventado pela Europa Ocidental, que criou a unidade do mundo. Não é por causa de Trump que os EUA vão deixar de ser uma potência ocidental. Todos temos bons e maus momentos. Mas um presidente não muda a natureza civilizacional do seu país.

 

A civilização e a democracia americanas podem determinar a destituição de Trump?

Mais uma vez, enganam-se os que pensam que o "impeachment" é possível. O Partido Republicano tem maioria no Congresso e, nessas condições, é pura ilusão pensar nessa possibilidade.

 

O crescente fragilizar do Presidente americano pode levá-lo a cair na tentação de fazer a guerra para criar maior unidade e desviar atenções?

O Presidente norte-americano não é um tirano e não pode fazer a guerra ou a paz consoante a sua própria vontade. Os EUA são uma democracia robusta, institucionalizada. É um dos raríssimos países que nunca foi senão uma república democrática e isso, apesar de tudo, deve merecer o respeito, designadamente daqueles que não têm essa tradição republicana tão consistente.

 

A crise grega não desapareceu. Nem o bloco dos credores. As forças que querem expulsar a Grécia não deixaram de existir.

 

Há dois anos alertava para o potencial aumento da vulnerabilidade externa de Portugal devido à aliança do PS com a esquerda radical. Mantém a opinião?

Foi muito importante Portugal estar alinhado com as políticas centristas europeias. Isso diminui riscos de isolamento e permite tirar maior partido das instituições europeias,. Era verdade com Mário Soares, é verdade com António Costa. Dois governos minoritários que encontraram na política europeia o reforço de poder que lhes faltava.

 

Com Soares, a aliança foi à direita...

As alianças são volúveis.

 

Mas ainda identifica esta solução com uma vulnerabilidade ao nível externo?

O Governo pode fazer, em domínios como a política económica e financeira, a demonstração de que era imune às pressões da esquerda radical, mas não é evidente que seja também esse o caso no domínio das políticas de segurança e defesa. 


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