Notícia
Bruce Springsteen: A longa marcha
“Born to Run”, lançado em 1975, foi um êxito. A voz de uma geração. Reflexo de uma década repleta de contradições. Algo do disco está na empolgante autobiografia de Bruce Springsteen.
Há quatro décadas, quando lançou a canção que o colocou no centro do rock, "Born to Run", Bruce Springsteen já era a voz da América que nascia ao som das sirenes que chamavam os trabalhadores para as fábricas. Era uma América de todos os sonhos, especialmente o da mobilidade social, que estava a ruir e a desintegrar-se face a uma realidade que iria sucumbir à fogueira das vaidades que Tom Wolfe descreveria de forma fascinante. Springsteen, filho da New Jersey proletária, não se reconhecia apenas no "Saturday Night Fever" que John Travolta mostrava como a noite de todas as fugas face ao trabalho pouco sedutor das cadeias de produção legadas por Henry Ford. E que podia ser a solução para o tédio geral. O rock de Springsteen era poderoso, musculado, feito de suor e lágrimas. E de alguma esperança.
Por essa altura, o cantor deparava-se com um desafio: os seus dois primeiros álbuns, "Greetings from Asbury Park, NJ" e "The Wild, the Innocent and the E-Street Shuffle" tinham fracassado nas vendas. Mas "Born to Run" tornar-se-ia um êxito. A voz de uma geração. As rádios, poderosos meios da altura para divulgação de discos, procuravam o disco que não existia. Springsteen cantava a canção apenas em concertos. O tema era um hino à fuga, cheio de referências culturais que os jovens trabalhadores reconheciam imediatamente. O músico e a canção eram reflexos de uma década repleta de contradições, algumas herdadas dos tumultuosos anos 60. 1975 seria um ano determinante para Springsteen.
Algo do disco pode ser percebido na empolgante autobiografia, chamada obviamente "Born to Run", que agora surge. Como se fosse o lado escrito da panóplia de guitarras, saxofones, teclados e bateria que moldavam e tornavam a canção num hino furioso. Springsteen crescera em Freehold, New Jersey, onde várias empresas conhecidas (da 3M à Nescafé) tinham fábricas. Mas, como muitas outras áreas do subúrbio, aquela também estava a morrer aos poucos. Contudo, o ambiente que o cercava era, para ele, um território feliz. Springsteen era um solitário que não praticava desporto. Se não se tivesse tornado num músico famoso, ninguém teria reparado nele. Nem se lembrariam que tinham andado na escola com um rapaz tão tímido.
A vitalidade artística no meio do caos
O rapaz tinha, no entanto, uma paixão: a música. Acabaria por ir parar a Asbury Park. Na altura, toda a cidade sofria de desemprego crónico. Em 1970, a violência urbana entre a polícia e a comunidade negra tornou-se uma constante. Tudo começava a ser decadente. Mas em Asbury Park, no meio do caos, crescia a vitalidade artística. Nos bares, cirandavam músicos como Danny Federici, Clarence Clemons ou Steven van Zandt, numa comunidade inter-racial que haveria de confluir na E-Street Band de Springsteen. Todos estavam fartos da pop melancólica dos Bee Gees ou dos Chicago, que dominavam os "tops" de vendas de discos.
Springsteen começou a criar um imaginário que tinha tudo que ver com a "working class" que se sentia cercada. A inflação e o desemprego tinham criado a estagflação. O mundo industrial desaparecia. E esta classe sentia isso mais do que ninguém na América. Nas linhas que abrem a canção "Born to Run", o cantor usa uma das suas metáforas favoritas: o automóvel como meio de fuga dos becos sem saída e desapontamentos, com que os jovens "blue-collars" se deparavam na altura. O sonho americano deveria estar algures. A canção transpirava autenticidade. Mas, nessa época, Springsteen enfrentava um conflito jurídico com o seu então empresário. E, por isso, entre "Born to Run" e os grandes álbuns que se lhe seguiram, "Darkness on the Edge of Town" e "The River", esteve dois anos sem poder editar.
A autobiografia está repleta de reflexões. Na parte final da obra, Springsteen escreve mesmo que: "Lutei toda a minha vida porque queria escutar e conhecer toda a história, a minha história, a nossa história, e compreender o máximo que pudesse. Queria saber, para me poder libertar das suas mais dolorosas influências, das suas forças malévolas, para celebrar e honrar a sua beleza, o seu poder, e poder contá-la bem aos meus amigos, à minha família e a vocês." Springsteen relembra os anos de adolescência, mas não entra em pormenores "cor-de-rosa", que normalmente polvilham outras autobiografias. E isso reflecte muito sobre ele. Ele conta o passado, não tenta torná-lo numa história comovente ou picante. A sua vida de "sex, drugs and rock'n'roll" é contada de forma contida, porque faz parte da história. E não porque poderia ser a zona empolgante de tudo o que conta. O que sobra é a alegria de estar em palco, algo que transpira das páginas, em concertos de duas, três ou quatro horas. Porque o rock não tem um relógio com início e fim.
A ética trabalhadora, a "culpa" muito católica, encontra-se também por estas páginas. Porque fazem parte integrante do universo "blue collar" de Springsteen. Fala da depressão que o afectou por alturas de "Born in the USA", de 1984, quando se tornou numa estrela global. Desesperado, chamou o seu empresário, Jon Landau, o antigo jornalista que escrevera que tinha visto o "futuro do rock'n'roll" e ele chamava-se Springsteen. Este aconselhou-lhe ajuda profissional. O mundo subterrâneo da alma do músico foi então confrontado com a luz da medicação. "Exposto defronte de milhares, sempre me senti perfeitamente seguro", escreve. "E é por isso que não se conseguem ver livres de mim", acrescenta. Foi isso que o levou sempre a cantar, de forma desafiadora, que: "I believe in the promised land." Não deixa de ser curioso que a alcunha pela qual é conhecido, "The Boss", está ausente destas páginas, porque ele a detesta. Isso acaba por ser um sinal de que aqui não há sensacionalismo. Há apenas a história de um jovem suburbano que cresceu no meio de uma América industrial em decadência. E sempre cantou sobre isso. E sobre a terra prometida que era difícil de alcançar.
Por essa altura, o cantor deparava-se com um desafio: os seus dois primeiros álbuns, "Greetings from Asbury Park, NJ" e "The Wild, the Innocent and the E-Street Shuffle" tinham fracassado nas vendas. Mas "Born to Run" tornar-se-ia um êxito. A voz de uma geração. As rádios, poderosos meios da altura para divulgação de discos, procuravam o disco que não existia. Springsteen cantava a canção apenas em concertos. O tema era um hino à fuga, cheio de referências culturais que os jovens trabalhadores reconheciam imediatamente. O músico e a canção eram reflexos de uma década repleta de contradições, algumas herdadas dos tumultuosos anos 60. 1975 seria um ano determinante para Springsteen.
A vitalidade artística no meio do caos
O rapaz tinha, no entanto, uma paixão: a música. Acabaria por ir parar a Asbury Park. Na altura, toda a cidade sofria de desemprego crónico. Em 1970, a violência urbana entre a polícia e a comunidade negra tornou-se uma constante. Tudo começava a ser decadente. Mas em Asbury Park, no meio do caos, crescia a vitalidade artística. Nos bares, cirandavam músicos como Danny Federici, Clarence Clemons ou Steven van Zandt, numa comunidade inter-racial que haveria de confluir na E-Street Band de Springsteen. Todos estavam fartos da pop melancólica dos Bee Gees ou dos Chicago, que dominavam os "tops" de vendas de discos.
Springsteen começou a criar um imaginário que tinha tudo que ver com a "working class" que se sentia cercada. A inflação e o desemprego tinham criado a estagflação. O mundo industrial desaparecia. E esta classe sentia isso mais do que ninguém na América. Nas linhas que abrem a canção "Born to Run", o cantor usa uma das suas metáforas favoritas: o automóvel como meio de fuga dos becos sem saída e desapontamentos, com que os jovens "blue-collars" se deparavam na altura. O sonho americano deveria estar algures. A canção transpirava autenticidade. Mas, nessa época, Springsteen enfrentava um conflito jurídico com o seu então empresário. E, por isso, entre "Born to Run" e os grandes álbuns que se lhe seguiram, "Darkness on the Edge of Town" e "The River", esteve dois anos sem poder editar.
A autobiografia está repleta de reflexões. Na parte final da obra, Springsteen escreve mesmo que: "Lutei toda a minha vida porque queria escutar e conhecer toda a história, a minha história, a nossa história, e compreender o máximo que pudesse. Queria saber, para me poder libertar das suas mais dolorosas influências, das suas forças malévolas, para celebrar e honrar a sua beleza, o seu poder, e poder contá-la bem aos meus amigos, à minha família e a vocês." Springsteen relembra os anos de adolescência, mas não entra em pormenores "cor-de-rosa", que normalmente polvilham outras autobiografias. E isso reflecte muito sobre ele. Ele conta o passado, não tenta torná-lo numa história comovente ou picante. A sua vida de "sex, drugs and rock'n'roll" é contada de forma contida, porque faz parte da história. E não porque poderia ser a zona empolgante de tudo o que conta. O que sobra é a alegria de estar em palco, algo que transpira das páginas, em concertos de duas, três ou quatro horas. Porque o rock não tem um relógio com início e fim.
A ética trabalhadora, a "culpa" muito católica, encontra-se também por estas páginas. Porque fazem parte integrante do universo "blue collar" de Springsteen. Fala da depressão que o afectou por alturas de "Born in the USA", de 1984, quando se tornou numa estrela global. Desesperado, chamou o seu empresário, Jon Landau, o antigo jornalista que escrevera que tinha visto o "futuro do rock'n'roll" e ele chamava-se Springsteen. Este aconselhou-lhe ajuda profissional. O mundo subterrâneo da alma do músico foi então confrontado com a luz da medicação. "Exposto defronte de milhares, sempre me senti perfeitamente seguro", escreve. "E é por isso que não se conseguem ver livres de mim", acrescenta. Foi isso que o levou sempre a cantar, de forma desafiadora, que: "I believe in the promised land." Não deixa de ser curioso que a alcunha pela qual é conhecido, "The Boss", está ausente destas páginas, porque ele a detesta. Isso acaba por ser um sinal de que aqui não há sensacionalismo. Há apenas a história de um jovem suburbano que cresceu no meio de uma América industrial em decadência. E sempre cantou sobre isso. E sobre a terra prometida que era difícil de alcançar.