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Bordalo II: O lixo era algo que eu tinha sempre à mão

Artur Bordalo aka Bordalo II – um nome de homenagem ao avô, o pintor Real Bordalo – alerta para um planeta adoecido e quer melhorá-lo também. “Attero”, a sua primeira grande mostra a solo em Lisboa, recebeu a visita de cerca de 27 mil pessoas.

Miguel Baltazar
07 de Dezembro de 2017 às 15:00
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Sebastião Salgado é a sua referência. O fotógrafo brasileiro é um artista humanista. E Artur Bordalo aka Bordalo II - nome de homenagem ao avô, o pintor Real Bordalo - alerta para um planeta adoecido e quer melhorá-lo também. Com as suas esculturas feitas a partir de lixo e de desperdícios vários, o artista português, amante da natureza e da bicharada, destaca-se pelas suas grandes instalações em séries como "Big Trash Animals", que inclui uma raposa na Avenida 24 de Julho, um sapo na Rua da Manutenção e um macaco num armazém na zona de Xabregas, onde esteve a exposição "Attero", a sua primeira grande mostra a solo em Lisboa, que recebeu a visita de cerca de 27 mil pessoas.


Escolhi o nome artístico Bordalo II como forma de homenagear o meu avô paterno [Real Bordalo]. Ele teve sempre uma influência muito forte na minha vida enquanto pessoa e isso reflectiu-se também em termos artísticos. Achei por isso que teria graça dar uma continuidade ao seu nome, quase como se de uma dinastia se tratasse. Eu costumava passar as férias e os fins-de-semana em casa dos meus avós, em Lisboa e em Sintra, sentava-me no ateliê do meu avô e ficava lá num cantinho a vê-lo pintar e a fazer as suas aguarelas.

Sempre gostei de desenhar, desde muito pequenino. Na escola, fazia uns dinossauros e oferecia desenhos a outros miúdos, desenhava tudo o que havia para desenhar. Mais tarde, comecei a rabiscar pelas paredes, teria uns 11 anos, fazia pseudónimos e bonecos. Depois fiz "graffiti" ilegais durante muitos anos, acho que todos os miúdos têm os seus escapes e as suas "formas de afirmação". Sempre me interessei pela ocupação do espaço público, sempre gostei de andar na rua e de ter esse contacto com a realidade.


Todas as crianças deveriam visitar aterros e centros de reciclagem. São um grande abrir de olhos para a falta de sustentabilidade do planeta.  


"Graffiti" para aqui, "graffiti" para ali, fui crescendo e os meus objectivos foram mudando. Tive sempre um espírito crítico, tive sempre uma palavra a dizer, e achei que escrever coisas e fazer bonecada nas paredes já não era suficiente para mim, queria fazer algo mais construtivo, que pudesse ter um significado mais forte. Gradualmente, juntei algumas ideias e comecei o projecto Bordalo II, ainda o meu avô era vivo. Comecei a levar o meu trabalho artístico mais a sério, partilhei imagens das obras nas redes sociais e fui recebendo convites para trabalhar um pouco por todo o lado.

Quando deixei de fazer apenas coisas na rua e a construir peças ditas de estúdio, comecei com interpretações das aguarelas do meu avô - ele gostava muito de pintar a cidade de Lisboa, pintava aquele ambiente meio urbano, meio rural. Eu fazia paisagens com perspectivas idênticas às dele, mas à minha maneira e com as minhas técnicas. Depois comecei a acrescentar lixo, mas foi algo completamente "random" no início. O lixo era algo que eu tinha sempre à mão. Como eu era desarrumado, iam-me sobrando caixas de tinta e latas vazias. Um dia, comecei a aglomerar aquelas peças e a fazer bases para pintar por cima e então percebi: estou a trabalhar com o lixo, o lixo é uma coisa forte, se calhar há alguma coisa a dizer com isto.

Pouco a pouco, senti que faltava um bocadinho de mim nas paisagens que desenhava. Senti que faltavam intervenientes. Foi nessa altura que comecei a colocar naquele "background" os ratinhos, as raposas e os porcos a interagir entre si. Normalmente, essas personagens apareciam a fazer maldades umas às outras ou, então, existia uma inversão de papéis entre animais e humanos, o que era uma forma de crítica social e ecológica. Por exemplo, na primeira peça desta exposição existe uma raposa com cães a caçar uma humana. Há também um urso no circo a chicotear o palhaço.

Os bichos são muito giros. Todos. Basta olharmos para eles sem os preconceitos habituais. Um rato é um mamífero, é parecido com um gato e com um cão. Não é um animal viscoso, tem um pêlo supermacio, os bigodes tocam-nos e fazem cócegas. O rato é um bicho muito giro, e é mais esperto do que os outros bichos porque consegue sobreviver na imundice humana, no nosso esgoto e no meio do nosso lixo.

Gosto da bicharada, gosto das árvores, gosto da natureza. Durante uns anos, vivi no meio do pinhal, junto de Fontanelas, perto das Azenhas do Mar. É engraçado, enquanto morei lá, de certa forma, sentia-me preso, faltava-me o ambiente urbano, eu era um miúdo adolescente e precisava de confusão. Provavelmente, de forma não consciente, absorvi muitas coisas que vim a utilizar mais tarde, e é mesmo assim que a vida funciona.

Estudei pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, não cheguei a terminar o curso, mas tirei bastante proveito dele, apesar de ter passado mais tempo em disciplinas "ao lado", como cerâmica e mosaico. As teorias eram dadas nos andares de cima e eu ficava lá em baixo, a trabalhar com o barro, que é algo extremamente terapêutico. Passava ali horas e horas. Aliás, a cerâmica é algo que me interessa explorar mais. Com o tempo. Tenho tempo para tudo. Não há tempo para nada, mas há-de haver tempo para tudo.


O rato é um bicho muito giro, e é mais esperto do que os outros porque consegue sobreviver na imundice humana, no nosso esgoto e no meio do nosso lixo. 


Na faculdade, ensinam-nos que o artista constrói primeiro o conceito e depois é que constrói a peça. No meu caso, foi ao contrário. Comecei a interpretar as peças depois de elas já estarem feitas. Acho até que se tivesse arranjado o conceito primeiro e depois construído a peça, poderia ter castrado o meu trabalho. Para mim, a obra não deve ser nua e vazia, deve ter um conceito subjacente, mas não há uma única forma de lá chegar.

O meu trabalho tem uma vertente activista. Como diz o Sebastião Salgado, o homem é o sal da terra, mas o sal em demasia também nos leva à morte. E aqui a questão não é o sal em demasia, mas a forma como o homem está a gerir os seus recursos e a espremer o planeta. Estamos a dar cabo de tudo demasiado depressa. E muitas vezes nem sequer nos apercebemos disso.

O processo criativo do meu trabalho levou-me a muitos sítios e a conhecer realidades que me tornaram ainda mais implacável em relação àquilo que quero fazer. Há sítios que vão ficar para sempre marcados na minha vida. Estive na Ciudad del Carmen, no México, que não tinha um centro de reciclagem e o aterro era ao lado de uma praia! Era uma coisa a perder de vista, com quilómetros e quilómetros de lixo, não víamos o fim do aterro, nunca vi nada assim. Mas, provavelmente, o sítio mais complicado onde estive foi no Haiti. Ali, o lixo ia directamente para o rio. Ali, os rios não são rios, são um aterro comprido.

Todas as crianças deveriam visitar aterros e centros de reciclagem. São um grande abrir de olhos para a falta de sustentabilidade do planeta, para o exagero do nosso consumo e para a importância da reciclagem. Acredito muito nas gerações futuras. As pessoas tendem a acomodar-se muito e, quando lhes querem "impingir" alguma coisa nova, continuam a preguiçar e a fazer tudo da mesma maneira. Por vezes, é preciso chegar a situações-limite, como a falta de água em Portugal, para despertar consciências. Se calhar, agora sentimos um peso de consciência maior quando tomarmos um banho de 20 minutos com a água sempre ligada. De vez em quando precisamos de levar algumas chapadas, espero é que essas chapadas não tenham chegado tarde demais.

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