Notícia
As livrarias históricas que foram salvas
A paixão pelos livros nem sempre chega para manter um negócio. Nos últimos tempos, houve várias livrarias antigas que estiveram prestes a fechar as portas. As que se salvaram mudaram de mãos e "lavaram a cara" ou continuaram com os mesmo proprietários, mas com novos projectos.
"O Salvador é que é o dono disto tudo!", diz José Ribeiro a rir enquanto o gato se roça pelas suas pernas. É por causa dele que muitas pessoas entram na livraria alfarrabista Ulmeiro, na Avenida do Uruguai, em Benfica. A sua mulher Lúcia concorda. "É o relações públicas", acrescenta. De facto, é difícil ignorá-lo. Quando chegámos, estava na montra a apanhar sol deitado em cima dos livros, como se fosse um objecto decorativo. Ao guiar-nos pela loja, José, o proprietário deste espaço, garante que aqui existe um "caos ordenado". Há pilhas de livros por todo o lado, discos de vinil, quadros encostados aos móveis e todo o tipo de "bibelots" gastos pelo tempo. Já lá vão 48 anos desde que José Ribeiro abriu a Ulmeiro. Por aqui passaram grandes nomes da cultura portuguesa, em tertúlias organizadas na cave, onde funcionava também uma galeria de arte. Zeca Afonso era amigo do proprietário e presença habitual nesses encontros. No dia 25 de Abril de 1974, o cantautor e outros amigos de José Ribeiro encontraram-se ali. Depois andaram por Lisboa a celebrar a liberdade. O livreiro diz que era "desalinhado" e "tão ingénuo" que nesse dia pôs três cartazes na montra - "um do PCP, outro do PS e outro do MRPP", recorda a rir. José Ribeiro teve também a preocupação de chegar ao público infantil. Criou o Clube Juvenil Ulmeiro, dedicado ao cinema. "Aos sábados de manhã, os pais vinham cá deixar as crianças e passávamos filmes na cave", recorda. Uma forma de pôr os miúdos também em contacto com os livros.
O gato Salvador é a mascote da livraria Ulmeiro, em Benfica.
Com o tempo, foram-se as pessoas, ficaram os livros. No final do ano passado, o livreiro decidiu pôr um ponto final neste projecto de vida. Queixava-se de falta de clientes. Admite que estava cansado de "puxar o barco". "São demasiados anos", desabafa. Quando a notícia foi divulgada pela comunicação social, levantou-se um movimento contra o encerramento da emblemática livraria. Em particular no bairro onde se insere. José Ribeiro ganhou ânimo e decidiu manter as portas abertas. Mas agora com um horário mais limitado. Só abre à tarde. Já não tem a energia da juventude e ser livreiro requer muito tempo. Chegava a passar mais de 12 horas na livraria. Enquanto conversámos junto à sua mesa de trabalho, também ela rodeada de livros por todo o lado, o Salvador vem pedir comida. Chega discretamente, sem um ruído. José Ribeiro diz que ele é muito fotografado por quem visita a livraria e até há clientes que escrevem poemas sobre o gato que depois lhe enviam.
José Ribeiro e a esposa, Lúcia, decidiram manter a emblemática loja aberta depois de um movimento que se levantou no bairro contra o encerramento. Estão a criar uma associação cultural para dinamizar o espaço e captar clientes.
Por estes dias, José Ribeiro anda mais motivado. Está a criar uma associação cultural, a Espaço Ulmeiro Associação Cultural, que será "o centro dinamizador dos projectos" culturais da Ulmeiro e que garantirá a sobrevivência daquele espaço. O projecto arranca durante este mês. Os sócios poderão descontar o valor da jóia (20 euros) e da quota mensal (5 euros) em compras na livraria. "É uma maneira de fidelizar clientes", explica. Além disso, pretende retomar a editora com o mesmo nome da livraria. Os dois projectos estão interligados. As edições terão pequenas tiragens e serão pré-vendidas. O objectivo é chegar aos 250 associados. Para já, tem cerca de 150. Alguns são os tais miúdos que participaram no Clube Juvenil Ulmeiro e que agora são homens e mulheres. A associação vai lançar uma revista chamada O Voo da Coruja, que será dirigida pelo pintor e poeta Hugo Beja. A cave da loja também voltará a ter vida, com eventos culturais organizados pela associação. A ideia é cruzar artes naquele espaço. Paralelamente, o alfarrabista continuará a fazer leilões online de livros antigos, na página da Ulmeiro no Facebook. Mas confessa que muitas vezes tem pena de se desfazer das obras. É o problema de negociar uma paixão.
Passar o testemunho
Na Culsete, em Setúbal, a história é diferente. A livraria abriu em 1973, pouco antes da Revolução dos Cravos. O casal Fátima e Manuel Medeiros ficaram, por trespasse, com a falida Culdex e criaram uma nova livraria que, ao longo de mais de quatro décadas, foi um espaço de culto para os amantes dos livros, setubalenses, e não só, no n.º23 da Avenida 22 de Dezembro. Foram muitas as tertúlias ali organizadas, as arruadas de livros, as palestras, as maratonas de leitura e as apresentações de livros com a presença dos seus autores. Mesmo depois da morte do marido, em 2013, Fátima levou o negócio avante, conciliando-o com a actividade docente. Mas os seus problemas de saúde agravaram-se e, depois de uma conversa com o médico, tomou a decisão de deixar a Culsete. "Foi uma decisão muito pensada", diz ao Negócios, até na forma como foi comunicada. O anúncio oficial foi feito numa carta aberta na sua página do Facebook, onde explicava que não tinha condições físicas para se manter à frente da livraria e que procurava alguém que quisesse continuar o projecto a que dedicou uma boa parte da sua vida. A livreira dava como data de encerramento o fim do mês de Outubro de 2016, caso não aparecesse ninguém interessado, mas tinha a esperança de, até ao último dia, encontrar alguém que o fizesse.
"A esmagadora maioria das livrarias tem feito um esforço para se modernizar e surgir com outra face aos leitores", reconhece Paulo Ferreira, director-geral da Booktailors, consultora para o mercado editorial.
Fátima Ribeiro de Medeiros garante que a situação financeira da Culsete era estável. "Não dava lucro, mas também não dava prejuízo", afirma, acrescentando que a livraria generalista, mas com um foco nas ciências sociais e humanas e na literatura para a infância e juventude, tinha clientes fiéis. Depois de receber várias propostas, acabou por trespassar o negócio "por um valor simbólico" a dois casais jovens da cidade. Diz que foi o projecto mais sólido que lhe foi apresentado e aquele que era mais fiel à identidade da livraria. "Eles aceitaram a Culsete tal como ela era, uma loja histórica." Por isso, não chegou a fechar as portas. Durante um mês, colaborou com os novos proprietários, que não tinham experiência no sector, apresentando-os a clientes e fornecedores. Na loja, pouco mudou. O que também ajudou a fazer a transição. Fátima Ribeiro de Medeiros está feliz com o desfecho. "Se eles [os novos proprietários] chegarem à minha idade na gestão da livraria, a cidade poderá contar com a Culsete por mais 25, 30 anos."
Inês Godinho é quem está na livraria setubalense em permanência. Ela e o marido, Mário Ferreira, já eram amigos do casal de sócios, Sónia Geadas e José Oliveira. As duas amigas andavam a conversar sobre a insatisfação profissional que sentiam, sobretudo pela falta de tempo para a família. Têm ambas filhos pequenos. Por outro lado, notavam que a cidade de Setúbal "tinha pouca dinâmica". Quando souberam que a Culsete ia fechar, ficaram tristes, afinal de contas era o fim de "uma livraria de referência", que foi "um marco para as gerações de 1970 e 1980", diz.
A decisão de comprar a livraria "foi reflectida, mas muito rápida". Foi tomada numa semana. "Tudo começou por uma questão de afecto e de não deixarmos a porta fechar", admite. Como estavam a entrar num sector que não conheciam, a ajuda de Fátima Medeiros logo no início foi fundamental. "Ela não disse: fiquem com isto. Foi uma passagem de testemunho", explica. Os novos proprietários querem manter a identidade da livraria, mas ao mesmo tempo inovar. Dentro de pouco tempo, farão pequenas modificações no espaço. Mas continuarão a ter títulos que "não se encontram facilmente noutras livrarias", como publicações de associações da cidade ou livros de autores da região. E também os clássicos e livros de fundo de catálogo. Além disso, pretendem apostar ainda mais no público infantil. "Queremos criar actividades que permitam aos pais irem namorar e deixarem as crianças aqui", diz. Inês admite que este é um negócio que não é fácil, "são milhares e milhares de títulos", e é importante conhecer as obras para haver um atendimento personalizado e "podermos aconselhar os clientes quando conhecermos os seus gostos".
De acordo com a consultora GfK, em 2016, venderam-se 12 milhões de livros em Portugal, o que significa uma queda de 3% face ao ano anterior. Em valor, foram movimentados 142 milhões de euros, menos 5% do que em 2015.
O serviço é o que pode fazer a diferença neste sector. "Um bom livreiro é parte fundamental para se fazer uma casa", afirma Paulo Ferreira, director-geral da Booktailors, uma consultora para o mercado editorial. Com as grandes superfícies a venderem livros com descontos consideráveis, resta às livrarias de rua fazer "o que outros 'players' não têm capacidade ou vocação para fazer". O consultor reconhece que "a esmagadora maioria das livrarias tem feito um esforço para se modernizar e surgir com outra face aos leitores". Exemplo disso é o alargamento do horário de funcionamento, uma programação cultural diversificada, ou a criação de estratégias para fazer o leitor entrar na loja, como oferecer um serviço de cafetaria e de venda de jornais. Por outro lado, houve o cuidado de melhorar a iluminação, a decoração e a sinalética. Ainda assim, "o mercado tem tido uma retracção nos últimos anos". E isso significa que "aqueles que ganham quota estão a fazê-lo à custa dos seus concorrentes." Mas, defende, "continua a haver um espaço para ocupar". E "espero que esse mesmo espaço seja ocupado pelas livrarias tradicionais".
De acordo com dados da GfK, uma consultora que monitoriza 80% do mercado (excluindo o segmento escolar), em 2016, venderam-se 12 milhões de livros em Portugal, o que significa uma queda de 3% face ao ano anterior. Em valor, foram movimentados 142 milhões de euros, o que representa uma derrapagem de 5% face a 2015. A pergunta impõe-se. Com esta tendência de retracção do mercado, vale a pena "salvar" uma livraria? Não será apenas adiar algo que é inevitável?
O peso da história
José Pinho comprou recentemente a segunda livraria mais antiga de Lisboa - a Ferin. É o dono da Ler Devagar, no espaço LX Factory, considerada uma das livrarias mais belas do mundo por várias publicações internacionais. Considera-se um caso raro porque "a maior parte das livrarias tem cada vez mais resultados negativos e vai fechando". É verdade que "há muitas livrarias, muitos supermercados, estações de correios", mas, "tudo isso vende a mesma coisa". A sua grande vantagem é "ter grandes espaços e poder ter uma oferta que ninguém tem". Para ele, "quem não tiver estas áreas não tem hipótese". Até agora, criou sempre livrarias de raiz. A Ferin foi a primeira casa feita que adquiriu. E logo uma com tanta História. A Ferin, na Rua Nova do Almada, nasceu em 1840. Foi criada por uma família belga que chegou a Portugal no tempo das guerras napoleónicas. A editora Principia, proprietária da livraria que estava com graves problemas financeiros, propôs o negócio a José Pinho.
José Pinho comprou a Ferin, na Rua Nova do Almada.
"Não foi bem uma compra, foi ficar com ela, com o passivo e com o pessoal. Eu achei uma proposta um bocado estranha. Não tinha que ver com a Ler Devagar e com aquilo que andávamos a fazer", conta ao Negócios. Mas, ao visitar a histórica livraria, mudou de ideias. Quando desceu as escadas, ficou apaixonado pelo piso inferior, onde existem duas salas abobadadas, que eram os armazéns e os escritórios. É lá que nos explica as potencialidades daquele espaço, muito maior do que o da livraria. Esta parte, até agora oculta para os clientes, tem porta para a Rua do Crucifixo. José Pinho criou ali uma livraria do livro raro e antigo. O livreiro não teve de fazer muito, apenas esvaziar as salas e deixar à vista o que já lá estava. Máquinas de escrever antigas, prensas e ferros de cravar, usados no tempo em que a Ferin era a encadernadora oficial da Casa Real. É isso que está a decorar a sala onde se vão realizar eventos culturais em parceria com a Relógio D'Água. Num canto, onde era a copa do pessoal, existe agora um pequeno bar, cujas mesas vieram do restaurante Palmeira, ali perto, que fechou as portas em Dezembro, e as cadeiras pertenciam ao Pavilhão Carlos Lopes. Neste espaço, haverá uma livraria generalista de preços baixos e livros infantis.
O dono da Ler Devagar, no LX Factory, ficou deslumbrado com o piso inferior da histórica livraria, criada em 1840, onde funcionavam escritórios e armazéns. Ali criou novos espaços para o público, como um bar.
Lá em cima, no número 72 da Rua Nova do Almada, a Ferin continuará a ser uma livraria temática, especializada em heráldica, genealogia, arte, História, catálogos de exposições e literatura, que continua a ter um "público fiel". "Aquilo que nós estamos a fazer aqui em baixo é completar essa oferta. Transformar o todo numa livraria generalista", diz. Nas montras, haverá também livros de autores portugueses traduzidos para outras línguas. O alvo não são os "turistas", explica, porque esses "não compram nada". O que lhe interessa são os estrangeiros "que vêm cá a Portugal e que se interessam por literatura, que vão às livrarias e compram". Mas isso não basta. A Ferin, considerada pela autarquia como uma das 63 lojas históricas de cidade, ainda não está salva. O livreiro aguarda a publicação de uma lei que regulamente as rendas das lojas históricas. "Não há nenhuma livraria que possa pagar uma renda ao preço por metro quadrado que está a ser pedido nesta zona." Por isso, alerta, se a lei não sair, "daqui a três anos a livraria pode fechar".
Com o tempo, foram-se as pessoas, ficaram os livros. No final do ano passado, o livreiro decidiu pôr um ponto final neste projecto de vida. Queixava-se de falta de clientes. Admite que estava cansado de "puxar o barco". "São demasiados anos", desabafa. Quando a notícia foi divulgada pela comunicação social, levantou-se um movimento contra o encerramento da emblemática livraria. Em particular no bairro onde se insere. José Ribeiro ganhou ânimo e decidiu manter as portas abertas. Mas agora com um horário mais limitado. Só abre à tarde. Já não tem a energia da juventude e ser livreiro requer muito tempo. Chegava a passar mais de 12 horas na livraria. Enquanto conversámos junto à sua mesa de trabalho, também ela rodeada de livros por todo o lado, o Salvador vem pedir comida. Chega discretamente, sem um ruído. José Ribeiro diz que ele é muito fotografado por quem visita a livraria e até há clientes que escrevem poemas sobre o gato que depois lhe enviam.
José Ribeiro e a esposa, Lúcia, decidiram manter a emblemática loja aberta depois de um movimento que se levantou no bairro contra o encerramento. Estão a criar uma associação cultural para dinamizar o espaço e captar clientes.
Por estes dias, José Ribeiro anda mais motivado. Está a criar uma associação cultural, a Espaço Ulmeiro Associação Cultural, que será "o centro dinamizador dos projectos" culturais da Ulmeiro e que garantirá a sobrevivência daquele espaço. O projecto arranca durante este mês. Os sócios poderão descontar o valor da jóia (20 euros) e da quota mensal (5 euros) em compras na livraria. "É uma maneira de fidelizar clientes", explica. Além disso, pretende retomar a editora com o mesmo nome da livraria. Os dois projectos estão interligados. As edições terão pequenas tiragens e serão pré-vendidas. O objectivo é chegar aos 250 associados. Para já, tem cerca de 150. Alguns são os tais miúdos que participaram no Clube Juvenil Ulmeiro e que agora são homens e mulheres. A associação vai lançar uma revista chamada O Voo da Coruja, que será dirigida pelo pintor e poeta Hugo Beja. A cave da loja também voltará a ter vida, com eventos culturais organizados pela associação. A ideia é cruzar artes naquele espaço. Paralelamente, o alfarrabista continuará a fazer leilões online de livros antigos, na página da Ulmeiro no Facebook. Mas confessa que muitas vezes tem pena de se desfazer das obras. É o problema de negociar uma paixão.
Passar o testemunho
Na Culsete, em Setúbal, a história é diferente. A livraria abriu em 1973, pouco antes da Revolução dos Cravos. O casal Fátima e Manuel Medeiros ficaram, por trespasse, com a falida Culdex e criaram uma nova livraria que, ao longo de mais de quatro décadas, foi um espaço de culto para os amantes dos livros, setubalenses, e não só, no n.º23 da Avenida 22 de Dezembro. Foram muitas as tertúlias ali organizadas, as arruadas de livros, as palestras, as maratonas de leitura e as apresentações de livros com a presença dos seus autores. Mesmo depois da morte do marido, em 2013, Fátima levou o negócio avante, conciliando-o com a actividade docente. Mas os seus problemas de saúde agravaram-se e, depois de uma conversa com o médico, tomou a decisão de deixar a Culsete. "Foi uma decisão muito pensada", diz ao Negócios, até na forma como foi comunicada. O anúncio oficial foi feito numa carta aberta na sua página do Facebook, onde explicava que não tinha condições físicas para se manter à frente da livraria e que procurava alguém que quisesse continuar o projecto a que dedicou uma boa parte da sua vida. A livreira dava como data de encerramento o fim do mês de Outubro de 2016, caso não aparecesse ninguém interessado, mas tinha a esperança de, até ao último dia, encontrar alguém que o fizesse.
"A esmagadora maioria das livrarias tem feito um esforço para se modernizar e surgir com outra face aos leitores", reconhece Paulo Ferreira, director-geral da Booktailors, consultora para o mercado editorial.
Fátima Ribeiro de Medeiros garante que a situação financeira da Culsete era estável. "Não dava lucro, mas também não dava prejuízo", afirma, acrescentando que a livraria generalista, mas com um foco nas ciências sociais e humanas e na literatura para a infância e juventude, tinha clientes fiéis. Depois de receber várias propostas, acabou por trespassar o negócio "por um valor simbólico" a dois casais jovens da cidade. Diz que foi o projecto mais sólido que lhe foi apresentado e aquele que era mais fiel à identidade da livraria. "Eles aceitaram a Culsete tal como ela era, uma loja histórica." Por isso, não chegou a fechar as portas. Durante um mês, colaborou com os novos proprietários, que não tinham experiência no sector, apresentando-os a clientes e fornecedores. Na loja, pouco mudou. O que também ajudou a fazer a transição. Fátima Ribeiro de Medeiros está feliz com o desfecho. "Se eles [os novos proprietários] chegarem à minha idade na gestão da livraria, a cidade poderá contar com a Culsete por mais 25, 30 anos."
Inês Godinho é quem está na livraria setubalense em permanência. Ela e o marido, Mário Ferreira, já eram amigos do casal de sócios, Sónia Geadas e José Oliveira. As duas amigas andavam a conversar sobre a insatisfação profissional que sentiam, sobretudo pela falta de tempo para a família. Têm ambas filhos pequenos. Por outro lado, notavam que a cidade de Setúbal "tinha pouca dinâmica". Quando souberam que a Culsete ia fechar, ficaram tristes, afinal de contas era o fim de "uma livraria de referência", que foi "um marco para as gerações de 1970 e 1980", diz.
A decisão de comprar a livraria "foi reflectida, mas muito rápida". Foi tomada numa semana. "Tudo começou por uma questão de afecto e de não deixarmos a porta fechar", admite. Como estavam a entrar num sector que não conheciam, a ajuda de Fátima Medeiros logo no início foi fundamental. "Ela não disse: fiquem com isto. Foi uma passagem de testemunho", explica. Os novos proprietários querem manter a identidade da livraria, mas ao mesmo tempo inovar. Dentro de pouco tempo, farão pequenas modificações no espaço. Mas continuarão a ter títulos que "não se encontram facilmente noutras livrarias", como publicações de associações da cidade ou livros de autores da região. E também os clássicos e livros de fundo de catálogo. Além disso, pretendem apostar ainda mais no público infantil. "Queremos criar actividades que permitam aos pais irem namorar e deixarem as crianças aqui", diz. Inês admite que este é um negócio que não é fácil, "são milhares e milhares de títulos", e é importante conhecer as obras para haver um atendimento personalizado e "podermos aconselhar os clientes quando conhecermos os seus gostos".
De acordo com a consultora GfK, em 2016, venderam-se 12 milhões de livros em Portugal, o que significa uma queda de 3% face ao ano anterior. Em valor, foram movimentados 142 milhões de euros, menos 5% do que em 2015.
O serviço é o que pode fazer a diferença neste sector. "Um bom livreiro é parte fundamental para se fazer uma casa", afirma Paulo Ferreira, director-geral da Booktailors, uma consultora para o mercado editorial. Com as grandes superfícies a venderem livros com descontos consideráveis, resta às livrarias de rua fazer "o que outros 'players' não têm capacidade ou vocação para fazer". O consultor reconhece que "a esmagadora maioria das livrarias tem feito um esforço para se modernizar e surgir com outra face aos leitores". Exemplo disso é o alargamento do horário de funcionamento, uma programação cultural diversificada, ou a criação de estratégias para fazer o leitor entrar na loja, como oferecer um serviço de cafetaria e de venda de jornais. Por outro lado, houve o cuidado de melhorar a iluminação, a decoração e a sinalética. Ainda assim, "o mercado tem tido uma retracção nos últimos anos". E isso significa que "aqueles que ganham quota estão a fazê-lo à custa dos seus concorrentes." Mas, defende, "continua a haver um espaço para ocupar". E "espero que esse mesmo espaço seja ocupado pelas livrarias tradicionais".
De acordo com dados da GfK, uma consultora que monitoriza 80% do mercado (excluindo o segmento escolar), em 2016, venderam-se 12 milhões de livros em Portugal, o que significa uma queda de 3% face ao ano anterior. Em valor, foram movimentados 142 milhões de euros, o que representa uma derrapagem de 5% face a 2015. A pergunta impõe-se. Com esta tendência de retracção do mercado, vale a pena "salvar" uma livraria? Não será apenas adiar algo que é inevitável?
O peso da história
José Pinho comprou recentemente a segunda livraria mais antiga de Lisboa - a Ferin. É o dono da Ler Devagar, no espaço LX Factory, considerada uma das livrarias mais belas do mundo por várias publicações internacionais. Considera-se um caso raro porque "a maior parte das livrarias tem cada vez mais resultados negativos e vai fechando". É verdade que "há muitas livrarias, muitos supermercados, estações de correios", mas, "tudo isso vende a mesma coisa". A sua grande vantagem é "ter grandes espaços e poder ter uma oferta que ninguém tem". Para ele, "quem não tiver estas áreas não tem hipótese". Até agora, criou sempre livrarias de raiz. A Ferin foi a primeira casa feita que adquiriu. E logo uma com tanta História. A Ferin, na Rua Nova do Almada, nasceu em 1840. Foi criada por uma família belga que chegou a Portugal no tempo das guerras napoleónicas. A editora Principia, proprietária da livraria que estava com graves problemas financeiros, propôs o negócio a José Pinho.
José Pinho comprou a Ferin, na Rua Nova do Almada.
"Não foi bem uma compra, foi ficar com ela, com o passivo e com o pessoal. Eu achei uma proposta um bocado estranha. Não tinha que ver com a Ler Devagar e com aquilo que andávamos a fazer", conta ao Negócios. Mas, ao visitar a histórica livraria, mudou de ideias. Quando desceu as escadas, ficou apaixonado pelo piso inferior, onde existem duas salas abobadadas, que eram os armazéns e os escritórios. É lá que nos explica as potencialidades daquele espaço, muito maior do que o da livraria. Esta parte, até agora oculta para os clientes, tem porta para a Rua do Crucifixo. José Pinho criou ali uma livraria do livro raro e antigo. O livreiro não teve de fazer muito, apenas esvaziar as salas e deixar à vista o que já lá estava. Máquinas de escrever antigas, prensas e ferros de cravar, usados no tempo em que a Ferin era a encadernadora oficial da Casa Real. É isso que está a decorar a sala onde se vão realizar eventos culturais em parceria com a Relógio D'Água. Num canto, onde era a copa do pessoal, existe agora um pequeno bar, cujas mesas vieram do restaurante Palmeira, ali perto, que fechou as portas em Dezembro, e as cadeiras pertenciam ao Pavilhão Carlos Lopes. Neste espaço, haverá uma livraria generalista de preços baixos e livros infantis.
O dono da Ler Devagar, no LX Factory, ficou deslumbrado com o piso inferior da histórica livraria, criada em 1840, onde funcionavam escritórios e armazéns. Ali criou novos espaços para o público, como um bar.
Lá em cima, no número 72 da Rua Nova do Almada, a Ferin continuará a ser uma livraria temática, especializada em heráldica, genealogia, arte, História, catálogos de exposições e literatura, que continua a ter um "público fiel". "Aquilo que nós estamos a fazer aqui em baixo é completar essa oferta. Transformar o todo numa livraria generalista", diz. Nas montras, haverá também livros de autores portugueses traduzidos para outras línguas. O alvo não são os "turistas", explica, porque esses "não compram nada". O que lhe interessa são os estrangeiros "que vêm cá a Portugal e que se interessam por literatura, que vão às livrarias e compram". Mas isso não basta. A Ferin, considerada pela autarquia como uma das 63 lojas históricas de cidade, ainda não está salva. O livreiro aguarda a publicação de uma lei que regulamente as rendas das lojas históricas. "Não há nenhuma livraria que possa pagar uma renda ao preço por metro quadrado que está a ser pedido nesta zona." Por isso, alerta, se a lei não sair, "daqui a três anos a livraria pode fechar".