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Afonso Rodrigues: Atirei o Direito ao mar e fugi com a música

Em 2007, os Sean Riley & The Slowriders, lançaram o seu primeiro disco, “Farewell”. Dez anos depois, o álbum vai ser reeditado em CD e em vinil e será objecto de um “tour”. Afonso Rodrigues, vocalista e compositor, conta-nos a sua história.

Miguel Baltazar
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Afonso Rodrigues nasceu nas Caldas da Rainha em 1980. Em casa, ouvia fado, jazz e música brasileira. Fora de casa, também ouvia Ramones e Joy Division. Nas prateleiras dos pais, estavam escritores como Hemingway, Dostoiévski e Saramago. Um dia, Afonso leu "A Pérola", de Steinbeck. Ficou fascinado pela beleza da história e, acima de tudo, ficou fascinado com a ideia da pérola em si: "Como uma coisa tão valiosa e tão bonita pode nascer de um pequeno pedaço de detrito, e essa é uma ideia que acabei por transportar para a vida." Deste caldo de músicas, livros e pessoas, nasceram as suas canções. Foi na Rádio Universidade de Coimbra que o vocalista e compositor conheceu os companheiros da banda Sean Riley & The Slowriders. Em 2007, lançaram o primeiro disco, "Farewell". Dez anos depois, o álbum vai ser reeditado em CD e em vinil e será objecto de um "tour", que é também uma digressão de homenagem a Bruno Simões, um dos elementos do grupo, que morreu no ano passado. O primeiro concerto da "tournée" está marcado para 7 de Outubro, no Teatro Faialense, nos Açores.


Nasci em 1980 nas Caldas da Rainha, onde vivi até aos cinco anos numa casa cheia de livros e de música. Na altura do pré-25 de Abril, os meus pais frequentavam tertúlias culturais, algo clandestinas, e estavam associados a alguns círculos por onde se movimentavam artistas como o Zeca Afonso. Nestes espaços, como bares e casas de fado, onde havia mais liberdade do que na rua, trocava-se informação e os chamados livros proibidos.

Alguns dos escritores favoritos dos meus pais eram, por exemplo, Hemingway, Dostoiévski, bem como os portugueses Saramago e José Cardoso Pires. Claro que, quando eu era pequenino, queria era ler banda desenhada, como o Tio Patinhas e o Mickey, mas ia percebendo que existiam outras coisas e outras histórias.

Um dia, o meu pai deu-me a ler "A Pérola", do Steinbeck, um livro muito pequenino. Fascinou-me a beleza da história e, acima de tudo, fascinou-me a ideia da pérola em si: de como uma coisa tão valiosa e tão bonita pode nascer de um pequeno pedaço de detrito, e essa é uma ideia que acabei por transportar para vida. Tento valorizar ao máximo, tanto quanto possível, as coisas pequenas, porque essas coisas pequenas, se nós as nutrirmos, podem transformar-se em coisas grandes e maravilhosas.

Tudo aquilo que nos toca, seja o livro mais impactante que lemos, seja uma pessoa que conhecemos num dado momento, vai reflectir-se em nós e, de alguma forma, aquilo que fui lendo e ouvindo foi-se repercutindo no meu trabalho, às vezes de uma forma mais directa, outras vezes de forma mais filtrada. Quando somos mais novos e ainda andamos à procura da nossa própria veia ou da nossa voz, somos mais permeáveis a influências. Quando entramos na escrita de uma forma confiante e experiente, acabamos por nos afastar um pouco das referências e colocamos um cunho mais pessoal naquilo que fazemos.

A música começa na minha vida com os meus pais a ouvirem discos em casa. Eles ouviam fado, jazz, música brasileira, e foi por aí que fui avançando, depois fui encontrando o meu próprio caminho. Aos 11, 12 anos, vivia num bairro em Leiria onde tinha amigos mais velhos que eram fãs de grupos como os Ramones e os Joy Division. Eu ouvia aquilo tudo e aos 14 anos formei a minha primeira banda, a Kotzen Musik.

Depois fui estudar Direito para Coimbra, achei que a advocacia era uma profissão em que, de alguma forma, eu poderia ajudar pessoas com problemas derivados da ausência de capacidade financeira para terem uma boa representação. Tinha a ideia de que poderia fazer a diferença, mas depois percebi que iria ser uma longa caminhada e que eu não estava assim tão focado nessa longa caminhada, e a dada altura comecei a estar mais interessado em agarrar-me a sério à música e fazer disso a minha vida. Fiz com o curso de Direito um bocado aquilo que o indiozinho fez à pérola, tive de o mandar ao mar porque, apesar de ser uma coisa muito bela, estava a trazer-me mais problemas do que benefícios. Decidi atirar o Direito ao mar e fugir com a música.

Entrei para a Rádio Universidade de Coimbra (RUC) no terceiro ano de faculdade e fiquei como director de programação, tive vários programas, como o Ruc'n'Roll, da responsabilidade do Bruno Simões. Eu já tinha algumas coisas escritas, mas nunca as tinha apresentado a ninguém. Era um pouco tímido... Mostrei-as ao Bruno, ele ficou entusiasmado e começámos a gravar.

Na altura, o Hugo (Ferreira), da actual editora Omnichord, era o presidente da RUC, interessou-se pelas nossas músicas e convidou-nos para fazer a primeira parte de um artista que ele ia trazer a Portugal para celebrar o aniversário da rádio, no Teatro Académico Gil Vicente. Faltavam cinco dias e nós nunca tínhamos ensaiado os três - eu, o Bruno e o Filipe Costa - ao mesmo tempo. Não dormimos, montámos um espectáculo de seis canções, fomos para o palco e correu lindamente. Aquela foi uma das noites mais felizes da minha vida - agora é um pouco mais difícil dizer que foi uma das noites mais felizes porque entretanto já tive uma filha, mas, sim, foi sem dúvida uma das mais felizes. Tinha conseguido algo pelo qual esperava há muito tempo e foi melhor do que alguma vez imaginaria.

Daí para a frente, os contactos começaram a aparecer, seguimos em frente e, em 2007, lançámos o primeiro álbum, "Farewell". Em quatro anos e meio, editámos três discos. Depois fizemos um pequeno intervalo, durante o qual cada um de nós se dedicou a outras coisas. Eu tenho outro projecto musical, os Keep Razors Sharp, também já trabalhei na edição de livros e neste momento estou ligado ao negócio imobiliário. Há um ano e meio, lançámos o nosso quarto disco juntos.

Agora, dez anos depois do primeiro álbum, fazemos este "tour" de celebração, até porque achamos que é uma boa forma de homenagear o Bruno e demonstrar às pessoas o valor que ele tem para nós. Depois, no início do próximo ano, voltaremos a reunir para ver onde é que anda a nossa cabeça e o nosso coração. Se nos sentirmos bem, avançamos, se não nos sentirmos bem, acho que aquilo que fizemos até aqui já foi bom. Estamos gratos por tudo o que nos foi acontecendo e pelo carinho que sentimos.

Sempre escrevi as músicas e as letras das canções e tento manter um equilíbrio entre ambas. Acho que existem vários estilos musicais, há estilos que não precisam da palavra, há estilos que vivem praticamente da palavra. Se estivermos a falar de um John Coltrane, ele não precisa de palavras, aquilo que ouvimos conta-nos uma história. Se falarmos de um Bob Dylan, se calhar, as palavras são mais importantes do que os acordes na guitarra. Os maiores poetas das canções são aqueles que conseguem fazer poemas para cantar que sobrevivem sem música. O Dylan é, para mim, o maior poeta da canção de sempre. O Cohen também é muito forte, mas eu tenho um fraquinho maior pelo Dylan.

Nasci numa altura em que já não tive de lutar pela liberdade, mas de alguma forma a educação que recebi ajudou-me a valorizar aquilo que temos hoje. Mas, quando temos de lutar, continuamos a fazê-lo. Basta olhar para a luta dos enfermeiros para perceber que as pessoas, quando realmente se sentem afectadas, vão para a rua lutar. E, felizmente, lutamos de uma forma civilizada, não andamos por aí a colocar "cocktails molotov".

Somos um povo ponderado, mas não me revejo na ideia de "passividade" dos portugueses, até porque isso envolve um estereótipo gigante, pressupondo que somos todos iguais, e não somos. Conheço portugueses pragmáticos, portugueses lutadores, portugueses violentos...

Criticando os estereótipos mas, ao mesmo tempo, aplicando outro, para grande parte de nós (nascidos depois do 25 de Abril), a vida é um pouco mais fácil, coisas básicas como a escolaridade estão mais ou menos asseguradas. Então lutamos mais por liberdades individuais e não tanto pela autodeterminação e liberdade enquanto povo. Ou seja, o que é que eu, Afonso, posso fazer com a minha vida: posso eu gostar de rapazes, pode a minha mãe gostar de mulheres, posso viver livremente essa vida em público? Penso que a luta pela liberdade individual é boa desde que cada um de nós não se esqueça de que há uma causa maior do que a nossa barriga e desde que essa nossa luta possa ser benéfica para os outros também.

Não tenho nenhuma inclinação para qualquer partido, voto nas pessoas em que acredito, às vezes podem estar mais à esquerda, outras vezes à direita. Quando tinha uns 12 anos, dava-me com muita gente ligada ao Partido Comunista e um dia cheguei a casa e disse aos meus que queria filiar-me no partido. Habilmente, disseram-me que eu era livre para fazer o que quisesse, mas que poderia praticar aquilo em que acreditava sem ter de assinar um "contrato" mais ou menos irrevogável com um partido. Sugeriram-me adiar a decisão. Acabei por aceitar a opinião deles e acho que foi a melhor coisa que fiz.


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