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A "casa das máquinas" da UE

Todos os dias, milhares de funcionários deslocam-se às diferentes direcções gerais e departamentos da Comissão Europeia para trabalharem em prol do interesse público europeu. Mas quem são os trabalhadores da função pública europeia? Que tarefas têm? Dias antes do fim da Comissão Barroso, fomos espreitar a "casa das máquinas da UE".

31 de Outubro de 2014 às 14:02
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É pelas 8h30 que Paula Pinho costuma chegar ao seu gabinete no 9.° andar do Berlaymont, o famoso edifício "em estrela" da capital belga, sede da Comissão Europeia (CE). Membro do gabinete do comissário alemão até agora responsável pela Energia, Gunther Oettinger, esta funcionária portuguesa, há 14 anos na CE, garante que não há um dia típico, "ou melhor, a regra é que não haja dois dias iguais". O trabalho de assessoria e aconselhamento com os outros serviços é feito sobretudo em inglês, mas, nas reuniões internas do gabinete, fala-se em alemão, a língua estrangeira que melhor domina.


O trabalho em equipas multinacionais, com recurso a várias línguas, é também o quotidiano de Pedro Velasco Martins no seio da direcção geral do Comércio da CE, em frente ao Berlaymont. Chefe de unidade adjunto, responsável pelas questões de propriedade intelectual e contratos públicos, está na Comissão desde 1996 e acompanha todas as negociações com países terceiros naquelas áreas.


Ser poliglota é, afinal, traço comum destes funcionários da UE, numa Europa com 24 idiomas oficiais. Ao todo, a função pública comunitária tem cerca de 55 mil trabalhadores (funcionários e pessoal externo) em 60 instituições, organismos e agências da União. Comissão, Conselho e Parlamento são os mais visíveis, mas há outros departamentos e instituições, tais como o Serviço Europeu de Acção Externa (o serviço diplomático da UE) e o Tribunal de Justiça. As despesas com a função pública - salários, edifícios, informática, equipamentos, tradução - representam 6% do orçamento anual da UE (8 mil milhões de euros).


É na Comissão, órgão executivo da UE, que trabalha o maior contingente: são 33.039 cidadãos dos 28 Estados-membros, entre funcionários, agentes e pessoal externo, peritos nacionais, de diferentes horizontes culturais e sociais. No total, as mulheres constituem 55% do pessoal da CE.


É essencialmente no designado "bairro europeu" de Bruxelas que Pedro Velasco Martins, Paula Pinho e a maior parte das pessoas da CE trabalham. Encontram-se espalhadas por dezenas de edifícios: no total, são 40 direcções gerais, serviços e outros departamentos. Existem alguns serviços no Luxemburgo e em Itália, e centros de investigação na Bélgica, Alemanha, Holanda e Espanha. Sem esquecer as representações da CE em cada Estado-membro e as 130 delegações (embaixadas) no mundo.


A Comissão refuta que sejam demasiados funcionários. Trinta mil pessoas é, por exemplo, inferior ao número dos que trabalham no município de Estocolmo (40 mil); e equivale apenas a três vezes os postos ocupados na Câmara Municipal de Lisboa, em 2014. "Servimos 500 milhões de pessoas", afirma Antony Gravili, porta-voz do comissário da Administração. "O número é pequeno, comparado com o do pessoal dos ministérios de alguns Estados-membros e, tendo em conta as funções da Comissão", corrobora Sonia Piedrafita, investigadora no Centro de Estudos Políticos Europeus, um think tank em Bruxelas.


Quem são os funcionários europeus?
A Comissão está dividida em serviços e direcções gerais, equivalentes aos ministérios: agricultura, indústria, comércio, etc. Em cada um dos serviços, o pessoal reparte-se em diferentes categorias, tarefas e escalões. Assistentes-secretários, assistentes (trabalho técnico/administrativo), passando por administradores (responsáveis pela elaboração de políticas, aplicação da legislação, análise, assessoria), até aos funcionários de topo, directores e directores gerais. Acima, a liderança política: os comissários e o presidente do executivo.

 

 

Ser poliglota é traço comum destes funcionários da UE, numa Europa com 24 idiomas oficiais.
Ao todo, a função pública comunitária tem cerca de 55 mil trabalhadores. É na Comissão, órgão executivo da UE, que trabalha o maior contingente: são 33.039 cidadãos dos 28 Estados-membros.

 


Cada instituição é responsável pelo recrutamento do seu pessoal, mas existe um âmbito jurídico comum consagrado no "estatuto do funcionário" e regime do pessoal. O salário de um funcionário varia entre os cerca de 2600 e os 18 mil euros brutos, consoante a função, anos de serviço, experiência, e nível de responsabilidades.


E qual o perfil dos que concorrem à função pública da UE? A grande maioria dos candidatos expatriados, "quase metade do pessoal vem das profissões liberais", explica Gravili. "Muitos juristas, economistas, mas também cientistas". "Muitos já tinham uma carreira profissional", sublinha. Antony Gravili garante que os concursos são muito estritos por forma a certificar que são os melhores candidatos a obter os postos.


Se tivermos como referência os currículos dos actuais 36 directores gerais (DG) da CE, constata-se que a grande maioria tem vários diplomas, um percurso profissional anterior, e há ainda quem tenha passado pelo mundo académico, instituições internacionais ou nacionais. Neste momento, Portugal tem dois directores-gerais à frente dos serviços da Mobilidade e Transportes e do Desenvolvimento e Cooperação.


Actualmente, há 875 portugueses nas várias categorias a trabalhar na CE, cerca de 2,6% do total. Os países com mais funcionários e pessoal são a Bélgica, e países de maior dimensão como Itália, França , Alemanha, Polónia, Roménia e Reino Unido. No outro extremo, estão países como a Croácia, Luxemburgo, Malta e Chipre.


Funções no dia a dia
As tarefas da CE são idênticas às de um governo: poder de iniciativa legislativa, guardião dos Tratados, gestão do orçamento da União e das políticas, representação da UE na cena internacional. Para o presidente cessante, Durão Barroso, a Comissão é a "casa das máquinas" da Europa, como sublinhou numa mensagem aos funcionários, enaltecendo a sua "entrega e profissionalismo".


Quando o projecto europeu foi lançado, os países privilegiaram sobretudo as relações económicas e comerciais. Mas o grau de integração política foi aumentando, as competências da UE ampliadas e os alargamentos sucederam-se (as últimas adesões implicaram a entrada de 6.700 funcionários e pessoal daqueles países).

 

Hoje, a UE está presente em inúmeros domínios do dia-a-dia: ambiente, segurança, agricultura, justiça, etc. Excessivamente técnica? "Bem, a Comissão tem um papel peculiar. Como detentora de iniciativa legislativa e guardiã dos Tratados, o seu trabalho implica um grau de especialização técnica muito elevado", afirma Sonia Piedrafita. "As direcções gerais sim, são especializadas como os ministérios", bem como os grupos de trabalho que a CE consulta antes de avançar com iniciativas legislativas. Mas a investigadora ressalva que, actualmente, as decisões estão mais politizadas, já que as políticas europeias afectam mais os cidadãos.


Se a nível das direcções gerais da CE, o acompanhamento específico de cada área implica uma tarefa técnica especializada, nos gabinetes dos comissários a função foca-se na análise política e assessoria. "O meu trabalho passa muito por aconselhar o comissário na sua área mas também em outras áreas que, não sendo da sua competência principal, são cobertas pelo colégio de comissários", explica Paula Pinho. Daí que acompanhe diariamente as questões relacionadas com comércio, segurança alimentar, relações externas, além da energia. Isso obriga-a a estar "operacional 24 horas/dia e 7 dias/semana", com telemóvel ligado, e a consultar frequentemente o "e-mail" também aos fins-de-semana, já que, por vezes, é necessário responder a questões imprevisíveis e urgentes.


Paula Pinho e os colegas de gabinete reúnem pelo menos duas vezes por semana com o comissário para prestar aconselhamento, preparar decisões, encontros e a agenda. Foi, essencialmente, o idealismo pelo projecto europeu que a motivou a concorrer à função pública europeia. E, nesse sentido, trabalha dia-a-dia, considerando uma mais-valia uma administração comunitária que permita à Europa falar a "uma só voz" em áreas fundamentais e de actualidade, tais como a segurança energética.


Mas não só de assessoria política é feito o trabalho no quotidiano. Uma das áreas em que a UE desempenha hoje um papel fundamental (competência exclusiva da União) é o comércio internacional, sendo a CE a negociar em nome dos Vinte e Oito os acordos com terceiros. Nos últimos meses, Pedro Velasco Martins tem estado absorvido pelas negociações com os Estados Unidos para um Acordo de Comércio e Investimento (o famoso TTIP). Entre duas rondas negociais com os EUA, presta ainda apoio à comissária indigitada para a pasta no novo executivo, e ao comissário cessante. Tem ainda a gestão da sua equipa de 18 pessoas e, de novo, volta às negociações de acordos comerciais com vários outros países.


"Queremos abrir mercados para os produtores europeus mas também queremos regras que protejam os nossos produtos nesses países", afirma. No fundo trata-se também de "exportar regras europeias" para defender o valor acrescentado dos produtos da UE. Negociar em nome da União na área da propriedade intelectual é, por vezes, "difícil", reconhece Pedro Velasco Martins. "Uma das questões mais importantes é encontrar um justo equilíbrio entre as partes".


Assim é, também, o dia a dia dos funcionários europeus: gerir a globalização, dentro e fora de fronteiras da UE, num contexto de poderes e responsabilidades reforçadas da Comissão Europeia.

 

 

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