Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

A cidade que Calvino não imaginou

A exposição de Lisboa no Museu Nacional de Arte Antiga tem o poder singular de mostrar um lugar e um tempo onde pertencíamos ao centro do mundo.

01 de Abril de 2017 às 09:00
  • ...
Há muito de fascinante em redescobrir uma cidade como ela foi um dia. A Lisboa recuperada, de algum modo reinventada por "A Cidade Global: Lisboa no Renascimento", a exposição no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), tem em si muitos dos traços que identificam uma "das invisíveis" de Ítalo Calvino, e outros tantos de uma urbe central que nunca conhecemos, se tivermos em conta, como devemos ter, o nosso lugar periférico na geografia do mundo. A Lisboa cidade invisível que podia ter sido imaginada e partilhada por Calvino aparece-nos nas pinturas que os curadores do MNAA e os historiadores envolvidos conseguiram trazer a exibição, bem como em alguns trabalhos cartográficos de um enorme virtuosismo estético e vasta mestria técnica.

Esta Lisboa é uma cidade que sabe, sem dúvidas, que o mundo vem pelo rio, e que se vira para ele à espera de tudo o que surgirá das partidas e das chegadas marítimas. A topografia submete-se a esta ordem, e o poder, nos palácios, a riqueza, nas casas senhoriais, a indústria, nos arsenais, e o comércio, nos armazéns, lojas e mercados, coexistem caoticamente com as ruas povoadas por nobres, burgueses, guerreiros, marinheiros, espiões, escravos e plebeus, que, observados por mulheres veladas à janela, circulam nas suas demandas diárias abertas ou ocultas.

É uma cidade frenética mas consequente, que sente estar no topo do mundo, tal como as que Calvino concebeu para as repúblicas italianas ou para as que foram os nós da interminável rota da seda. A outra Lisboa recuperada pela exposição no MNAA é-nos dada principalmente pelos objectos reunidos, que vão dos preciosos contadores e altares criados na Índia, onde sobressai uma notável peça criada para a Companhia de Jesus, à reprodução de animais exóticos, passando, claro, por todos os objectos que mostravam capacidade de luxo e de poder, como as tapeçarias, as cerâmicas ou os cofres.

O que testemunham os objectos, e os relatos em livro, alguns deles preciosos como o relacionado com a arte naval portuguesa, é uma Lisboa que poucas vezes imaginamos, um vasto lugar espalhado pela beira do rio, de arquitectura por vezes majestática mas muitas vezes modesta, que era o nó central dos cruzamentos possíveis das Áfricas, dos Orientes e das Europas.

Para quem conhece e se resignou ao modesto lugar da cidade e do país no mundo depois do Renascimento, a visão trazida pela mostra do MNAA é um lugar de espanto e de redescoberta. As pinturas, as cartas topográficas, os objectos, levam para um outro lugar a nossa imaginação, o de um espaço criado pela e para a globalização, onde Estados e homens procuravam a fortuna, o domínio e as respostas para os enigmas metafísicos que os perseguiam.


Nota ao leitor: Os bens culturais, também classificados como bens de paixão, deixaram de ser um investimento de elite, e a designação inclui hoje uma panóplia gigantesca de temas, que vão dos mais tradicionais, como a arte ou os automóveis clássicos, a outros totalmente contemporâneos, como são os têxteis, o mobiliário de design ou a moda. Ao mesmo tempo, os bens culturais são activos acessíveis e disputados em mercados globais extremamente competitivos. Semanalmente, o Negócios irá revelar algumas das histórias fascinantes relacionadas com estes mercados, partilhando assim, de forma independente, a informação mais preciosa.


Ver comentários
Saber mais Calvino Lisboa exposição arte museu Índia Companhia de Jesus Renascimento globalização
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio