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Desafiar o mundo em linha recta

O passado revestido de sonho, metáforas e palavras medidas com cuidado. Esta não é mais uma autobiografia. É o chileno Alejandro Jodorowsky a questionar o que seria o futuro sem poesia. Uma borboleta presa pelas vontades alheias.

07 de Janeiro de 2017 às 13:00
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"Poesia sem fim"
O filme autobiográfico de Alejandro Jodorowsky, focado nos anos de juventude em Santiago do Chile, chegou na passada semana às salas de cinema portuguesas. "Poesia sem fim" foi aplaudido no último festival de Cannes.


Poderia dizer-se que a culpa tem forma de livro de capa verde, com García Lorca escrito a negro. Não estivesse a semente da poesia já plantada quando Alejandro Jodorowsky chegou, em tenra idade, à cidade de Santiago do Chile.

Em "Poesia sem fim" é o realizador que olha para si próprio no passado. Versão mais onírica, idealizada, sem desapegar dos contornos que a realidade teceu na década de 1940. Entre as máscaras que dão volume à multidão, há rostos que se destacam. Porque se salvaram pela arte.

Alejandro Jodorosky - neste filme interpretado pelo filho Adan - vive, num bairro problemático da cidade, constrangido pela família, ansiosa pelo seu futuro como médico. "Vais morrer de fome", avisam-no. Ele sabe que a poesia iluminará o seu caminho, como uma borboleta.

Com um acto de rebeldia digno de poeta, saca do machado e deita abaixo - literalmente - a sua árvore genealógica. Livre dessas raízes, e com o "diabo vendido à alma", é tempo para arrancar um novo caminho. Ponte de partida: Café Íris - o local onde poetas conhecem as suas musas, outros escritores e, quiçá, a si mesmos.

Stella Díaz Varin, Enrique Lihn, Nicanor Parra são as três presenças mais fortes destas jornadas. Em simultâneo, sucedendo-se, substituindo-se. Nestes meandros vai-se construindo o percurso do poeta e cineasta chileno, hoje com 87 anos e cheio de energia para retractar o que foi, outrora, o seu universo antes da partida para França.

Além da explosão de cores - viva o vermelho, o branco ou o negro -, este é um filme de absurdos e metáforas visuais perfeitamente conseguidas. Sempre ultrapassando a barreira do real mas respeitando o passado. Meta: o surrealismo que Jodorowsky foi à procura em terreno gaulês e, mais concretamente, beber a André Breton.

"Poesia sem fim" cumpre, de facto, o que o seu título preconiza. A construção é cuidada nas imagens e nas palavras. Há a aura de obra de arte que o chileno procura cultivar: um grito contra o peso crescente do lado industrial do cinema e a defesa do seu traço experimental. Não será por acaso que parte do orçamento deste trabalho contou com doações online, para comprovar que há público interessado a dizer "não" às histórias produzidas em série.

Jodorowsky é poeta, palhaço de circo, criador de marionetas. Rodeado por um imaginário que pode ser desconfortável, como a própria arte. E, inevitavelmente, pelas feridas do passado que não foram curadas. No cinema, elas ganham uma nova possibilidade de tratamento. Sem rodeios, na figura do pai, também interpretado por outro filho do artista: no porto, a violência do adeus real dá lugar ao abraço e beijos esperados.

Mais do que contar o seu percurso, o cineasta traça uma pincelada transversal e deixa uma questão: o que seremos nós se vivermos segundo os sonhos dos outros? Seres sem capacidade de abraçar o mundo, de transformar a poesia em acção e, se assim quisermos, percorrer o mundo em linha recta.

Alejandro Jodorowsky entra, também ele, por várias vezes, em cena. Como um conselheiro do futuro para o seu eu mais novo, um guia para lembrar que a velhice não é humilhação. Nem a morte, tão presente ao longo de todo o filme.

Em dias de carnaval, as ruas enchem-se de vermelho e negro, a evidenciar as chamas do inferno e as ossadas humanas. E, entre a confusão, emerge "um ser de pura luz". Alejandro Jodorowsky transformado em anjo pela força da poesia. Voamos - ou navegamos - para outras paragens pelas palavras. Adiós, poetas!



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