Notícia
Os banqueiros que ‘rebentaram’ a bolha de 2 biliões da Aramco
O presidente da maior petrolífera do mundo esteve prestes a perder a paciência.
Numa reunião em Riade, numa noite abafada de outubro, Achintya Mangla, um dos banqueiros mais importantes do JPMorgan Chase, disse a Yasir Al-Rumayyan que não havia forma de os investidores internacionais avaliarem a Saudi Aramco - a poucas semanas da oferta pública inicial (IPO) – em 2 biliões de dólares.
Al-Rumayyan, que em poucos anos passou da direção de um banco de investimento de média dimensão em Riade para um dos cargos mais poderosos da economia global, explodiu. Al-Rumayyan soltou uma série de palavrões em árabe e em inglês que chocaram a sala, repleta de banqueiros. Muito provavelmente o presidente estava com medo de contra aquilo ao seu chefe, o príncipe herdeiro que havia prendido muitas das pessoas mais ricas do país num hotel de cinco estrelas há apenas dois anos.
Nos três anos e meio desde que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman propôs pela primeira vez um IPO da Aramco - a petrolífera estatal que produz 10% do petróleo mundial – a avaliação de 2 biliões de dólares sempre causou problemas.
O príncipe, que gere os assuntos do dia-a-dia do reino, insistia há muito no valor estratosférico, quase o dobro de qualquer outra empresa no planeta, e ninguém conseguia convencê-lo de que os investidores globais não iriam concordar. Todos os que o desafiaram foram afastados, incluindo Khalid Al-Falih, que foi demitido dos cargos de presidente da Aramco e de ministro do Petróleo no início deste ano.
Estes relatos baseiam-se em entrevistas com banqueiros, consultores, empresários, funcionários do governo e membros da família real, muitos dos quais pediram para não serem identificados. A Aramco, os bancos e os gestores de fundos não quiseram comentar.
Quando os banqueiros começaram a disputar um papel no IPO este ano, disseram a Al-Rumayyan o que ele precisava de ouvir: que 2 biliões de dólares não era impossível. O intervalo inicialmente proposto por Wall Street foi de 1,7 a 2,4 biliões de dólares, de acordo com as pessoas envolvidas no processo.
Mas, à medida que a venda se aproximava, o preço tornava-se insustentável. Em setembro e início de outubro, os bancos que estavam a trabalhar na operação da Saudi da Aramco percorreram o mundo para promover a oferta de forma informal junto de gestores, desde Boston a Tóquio. Em todos os lugares, os investidores estrangeiros disseram à empresa que a avaliação era demasiado alta. Na Suíça, onde são geridos biliões de dólares das pessoas mais ricas do mundo, a gestora Pictet & Cie. avaliou inicialmente a empresa em 800 mil milhões de dólares.
Os bancos tiraram notas. As anotações que resumiam o feedback, e que foram vistas pela Bloomberg, era uma espécie de ‘quem é quem’ na indústria global dos fundos, desde o Capital Group, um grande investidor em recursos naturais, até à BlackRock, a maior gestora de fundos do mundo. O consenso dos investidores estrangeiros apontava para uma avaliação em torno de 1,2 biliões de dólares. Alguns sinalizaram que poderiam subir um pouco mais. "Até 1,5 biliões com base nos dividendos", foi o feedback da Franklin Templeton Investments, especialista em mercados emergentes e uma das mais generosas.
O problema para muitos investidores resumia-se em duas palavras: dividend yield. Nos 2 biliões de dólares, a Aramco pagaria aos acionistas um dividendo equivalente a um retorno de menos de 4% do seu dinheiro, bem abaixo do que pagam a Exxon Mobil, a Royal Dutch Shell, a Chevron e outras grandes empresas do setor.
Os investidores precisam de um dividend yield muito maior, o que exige uma avaliação mais baixa. A Wellington Asset Management, que tem 1 bilião de dólares de ativos sob gestão, disse aos bancos que o dividend yield tinha de subir para 7% ou 8% para fazer da empresa um investimento atrativo, o que implicava uma avaliação de cerca de 900 mil milhões de dólares.
A missão de Mangla, do JPMorgan, naquela noite de outubro, era dar a notícia ao cliente. Falando em nome do grupo de bancos contratados para a oferta, ‘rebentou’ a bolha de 2 biliões de dólares, segundo duas pessoas que participaram na reunião.
Al-Rumayyan, de 49 anos, que não tinha experiência no setor do petróleo e gás antes de se tornar presidente da Aramco, sentiu-se traído pelos mesmos banqueiros de Wall Street que lhe disseram que era possível garantir um IPO de 2 biliões de dólares. A Arábia Saudita tinha de fazer uma escolha difícil – enfrentar a humilhação, aceitar uma avaliação abaixo de 1,5 biliões de dólares e atrair investidores estrangeiros. Ou adiar a oferta, talvez para sempre.
Riade, desejosa de restaurar a posição do reino depois do assassinato de Jamal Khashoggi, optou por uma terceira via: ignorar os investidores estrangeiros e vender as ações da Aramco em casa. O governo pressionaria famílias locais ricas, muitas das quais tiveram membros trancados no Ritz-Carlton de Riade em 2017, e traria alguns amigos do Médio Oriente, incluindo fundos controlados pelos governos dos Emirados Árabes Unidos e Kuwait. Mesmo assim, tinha de comprometer a avaliação, aceitando 1,7 biliões de dólares.
Para Wall Street, já abalada pelo colapso do IPO da WeWork e do fraco desempenho crónico da Uber, a Aramco é outro embaraço. Depois de apresentarem avaliações irrealistas para garantirem um lugar no negócio, os bancos mais famosos do mundo não conseguiram cumprir, atraindo desprezo dos seus clientes e escárnio dos investidores. Agora, muitos bancos enfrentam a perspetiva de não receberem por quase quatro anos de trabalho.
O facto de o IPO ter acontecido este ano já foi uma surpresa.
O plano está em curso desde o início de 2016, quando o príncipe Mohammed disse ao The Economist que achava que a privatização ajudaria a sua campanha Vision 2030 a modernizar a economia saudita dependente de petróleo. Mas a oferta, inicialmente prevista para 2018, foi adiada várias vezes, enquanto a liderança saudita discutia onde cotaria a empresa e qual seria a sua avaliação.
No início deste ano, o presidente da Aramco e ministro do Petróleo, Al-Falih, acreditava que o IPO estava paralisado e esperava que a operação fosse definitivamente cancelada. Mas o príncipe herdeiro e Al-Rumayyan, que chefiava o fundo soberano que receberia os recursos, ainda estavam interessados.
Durante todo o processo, pautado por avanços e recuos, um banqueiro desempenhou um papel fundamental, embora nunca tenha estado no centro das atenções. Michael Klein, um veterano de Wall Street que decidiu sair do Citigroup quando não foi nomeado CEO durante a crise financeira, aconselhou diretamente a Aramco, ajudando o presidente da empresa a escolher os bancos que seriam responsáveis pelo IPO. Juntamente com a Lazard e a Moelis & Co., Al-Rumayyan nomeou a sua empresa como consultora financeira independente.
Se alguém poderia ter avisado Al-Rumayyan de que Wall Street estava a inflacionar a avaliação da Aramco para garantir um papel no IPO, era o sempre presente Klein. Nunca o fez. Segundo várias pessoas, Klein desistiu das tentativas de ter uma discussão com o governo saudita sobre a avaliação.
Também o Evercore, que trabalhou no IPO de 2016 a 2018, não regressou. Um dos seus principais banqueiros, David Waring, alertou o reino no início do processo que os 2 biliões de dólares seriam muito difíceis de alcançar.
Embora o trabalho no IPO estivesse a diminuir bastante, o príncipe herdeiro continuava a insistir que a operação teria de ser realizada no início de 2021. Mas no verão, Al-Rumayyan ficou ansioso com a possibilidade de a guerra comercial EUA-China causar uma desaceleração económica, afundar os preços do petróleo e afastar a possibilidade de avançar com o IPO durante muitos anos.
"O palácio real entrou em pânico a pensar que os preços do petróleo estavam prestes a cair", disse uma pessoa que trabalhou na operação durante quase quatro anos. "Eles viram duas opções: apressar o IPO imediatamente ou esquecê-lo durante muito, muito tempo".
Primeiro, a Arábia Saudita tentou drenar o mercado de petróleo, reduzindo a produção para 9,6 milhões de barris por dia, mais de 700 mil barris por dia abaixo da sua quota oficial da OPEP. Para o reino, foi uma jogada sem precedentes. Mesmo assim, o preço do petróleo caiu para quase 55 dólares por barril em agosto, abaixo da faixa de 60 a 70 dólares por barril necessária para apoiar o IPO.
Al-Rumayyan, convencido de que o tempo estava a esgotar-se, decidiu que a operação precisava de ser acelerada, convencendo o príncipe Mohammed de que, se queria o IPO, deveria colocá-lo nos comandos.
Pagar o preço
Al-Falih, que misturou habilidade administrativa com um estilo abrasivo, pagou o preço pela sua oposição. Foi destituído como presidente da Aramco a 3 de setembro e substituído por Al-Rumayyan. (Também foi substituído como ministro do Petróleo algumas semanas depois.) O campeão do IPO estava agora à frente da empresa.
Com pouco tempo para organizar a operação, a Aramco descartou a possibilidade de ficar cotada numa bolsa internacional. Mas Al-Rumayyan ainda queria trazer milhares de milhões de dólares em dinheiro internacional para a Arábia Saudita. Para garantir o sucesso - e a cobertura positiva dos analistas - contratou quase todos os bancos de Wall Street, incluindo o Goldman Sachs, Morgan Stanley, Bank of America e JPMorgan.
Al-Rumayyan e Amin Nasser, CEO da Aramco, pensaram que o IPO seria bastante fácil. Apenas alguns meses antes, a empresa havia feito a sua primeira oferta internacional de obrigações, e com muito êxito.
Talvez cega por esse sucesso, a Aramco entrou no IPO mal preparada. Apesar de quatro anos de trabalho, os responsáveis ainda tinham dificuldade em responder a perguntas simples de investidores estrangeiros, a sua equipa jurídica não conseguiu produzir documentos dentro do prazo e ninguém na Aramco conseguiu explicar de forma convincente porque é que a empresa merecia a sua avaliação de 2 biliões de dólares.
Culpar o Irão
Foi então que nas primeiras horas do dia 14 de setembro, uma frota de drones atacou o coração da indústria petrolífera saudita - a gigante fábrica de processamento de petróleo em Abqaiq, no deserto oriental do reino. Metade da produção da Aramco foi eliminada em minutos.
O reino culpou o Irão pelo ataque, mas disse que não haveria interrupção no fornecimento de petróleo a clientes em todo o mundo. Os comerciantes de petróleo, que viam imagens de tanques perfurados e oleodutos destruídos, estavam céticos. Muitos assumiram que o IPO teria de ser adiado.
O príncipe Mohammed disse aos assessores que qualquer atraso seria uma vitória para o Irão. O novo ministro do Petróleo, o meio-irmão do príncipe herdeiro, Abdulaziz bin Salman, e o CEO da Aramco, Nasser, prometeram que os danos poderiam ser revertidos em semanas. Aos bancos do IPO foram dadas ordens para que continuassem a trabalhar.
A Arábia Saudita fez tudo para impulsionar a avaliação: as taxas de imposto foram cortadas ainda mais e os investidores receberam incentivos para comprar as ações. A intenção de avançar foi finalmente anunciada por Al-Rumayyan e Nasser a 4 de novembro.
Mas o feedback dos investidores internacionais não melhorou. Numa reunião nas primeiras horas de 17 de novembro, a Arábia Saudita decidiu reduzir o tamanho do IPO e abandonar os planos de vender as ações internacionalmente. Um roadshow em Londres e outras capitais financeiras foi interrompido. Os bancos de Wall Street, que lutaram tanto para ganhar um papel na operação, foram despejados.
A operação tornou-se o que o príncipe Abdulaziz, ministro do Petróleo, descreveu como um IPO da "nossa família e amigos", contando com investidores de retalho locais, sauditas ricos e governos regionais. O governo saudita até gastou mais de 2 mil milhões de dólares do seu próprio dinheiro para comprar ações.
Foi feita uma tentativa frustrada de convencer o Qatar - sob bloqueio económico de Riade - a fazer um grande investimento.
A operação avançou. Numa conferência de imprensa na sede da OPEP em Viena, o príncipe Abdulaziz repreendeu a imprensa internacional pela sua cobertura do IPO e disse que a empresa chegaria aos 2 biliões de dólares em poucos meses. Só no primeiro dia de negociação, o preço subiu 10%, elevando o seu valor de mercado para 1,88 mil milhões de dólares.
"Os que não compraram ações da Aramco estarão a chuchar no dedo ao ponto de eu temer que acabem por ter de se tratar no hospital", afirmou o ministro mais tarde, em entrevista.