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Estados e empresas são mais chamados à justiça climática

A litigância climática ganhou protagonismo quando seis jovens portugueses levaram 32 países ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por danos ambientais. Agora é o Estado português a enfrentar a primeira ação dentro de portas por “inação climática”.

Sónia Santos Dias 20 de Dezembro de 2023 às 13:30
A greve climática dos jovens estudantes foi a primeira a sinalizar uma maior contestação à ação dos Estados e Portugal não foi exceção.
A greve climática dos jovens estudantes foi a primeira a sinalizar uma maior contestação à ação dos Estados e Portugal não foi exceção. António Pedro Santos/Lusa
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Após um ano de ondas de calor, incêndios florestais e inundações em Portugal, os grupos de defesa do clima Último Recurso, Quercus e Sciaena uniram-se para iniciar, no final de novembro, procedimentos legais contra o Estado português, contestando a alegada falta de empenho do país em lidar com os impactos da crise climática. Trata-se do primeiro caso de litigância climática em Portugal.

O motivo? "A falta de execução da Lei de Bases do Clima", explica ao Negócios Maria Paixão, coordenadora do departamento jurídico da Último Recurso. "Tratando-se de uma Lei de Bases, é imprescindível que seja devidamente executada através de criação dos vários organismos, planos, programas e estratégias previstos na lei. Sem isto, a Lei de Bases não passa de letra morta, sem qualquer impacto sobre a vida real dos portugueses", sublinha Maria Paixão.

A litigância climática refere-se ao conjunto de ações judiciais e processos legais movidos por indivíduos, grupos, organizações não governamentais (ONG) e até mesmo governos contra empresas, governos e outras entidades consideradas responsáveis por danos ambientais.

Esta forma de luta contra as alterações climáticas tem por objetivo utilizar os meios legais para responsabilizar os principais contribuidores para a crise climática. "Os tribunais têm o poder de condenar os responsáveis pela crise climática, o que não se verifica noutras formas de intervenção cívica e social", salienta a coordenadora jurídica. Além disso, "Portugal é um país onde a literacia jurídica está muito em falta". "As violações da lei são frequentes e prejudicam seriamente as comunidades locais, sem que estas conheçam os meios que estão ao seu alcance para reagir", acrescenta.

Usa-se o processo judicial como faísca para uma discussão mais alargada, que democratize a implementação das políticas climáticas. Maria Paixão
Coordenadora do departamento jurídico da Último Recurso 
A ação deu entrada no Tribunal Civil de Lisboa, estando agora em processo de ser distribuída a um juiz. Seguir-se-á um momento em que o Estado português, enquanto réu, terá oportunidade de apresentar a sua contra-argumentação ao tribunal. Com este processo, a organização pretende "inaugurar a litigância estratégica em Portugal em matéria climática, utilizando o processo judicial como faísca para uma discussão mais alargada, que democratize a criação e implementação das políticas climáticas".

Fenómeno em crescimento

Segundo o Banco de Dados de Litígios sobre Mudanças Climáticas, projeto que agrega casos a nível global exceto os EUA (que possuem uma base de dados própria), existem atualmente 852 casos registados, sendo que a maioria (254) se prende com questões de avaliação ambiental e licenciamento, seguidos de ações relativas à emissão e comércio de gases com efeito de estufa (222), ambos nas categorias de ação contra governos. O terceiro maior volume de casos é instaurado contra empresas e indivíduos (188). Portugal consta dessa base de dados apenas com o caso interposto pela associação Último Recurso ao Estado português. "A litigância climática é já há algum tempo um fenómeno em crescimento, não só quantitativo, mas também qualitativo, ou seja, com diversificação de entidades intervenientes, de jurisdições, de pedidos e de fundamentos", explica Heloísa Oliveira, investigadora do Centro de Investigação de Direito Público e Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Tendo em conta os casos apresentados, identifica-se "uma tendência para aumento do número de casos com fundamento em ‘greenwashing’ e contra empresas", sublinha Heloísa Oliveira.

Um outro caso mediático, e que trouxe para a agenda pública esta temática em Portugal, refere-se à ação contra 32 países europeus que seis jovens portugueses levaram à Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por danos ambientais e por "não terem feito a sua parte para evitar a catástrofe climática". A audiência, em setembro passado, decorreu três anos depois de o caso ter sido submetido a este tribunal e é considerada a maior ação judicial na área do clima alguma vez iniciada, dado o elevado número de arguidos (32 Estados). O processo ainda está a correr e que poderá custar mais de um milhão de euros.

O tema, no entanto, é ainda relativamente novo nos meandros da justiça, pelo que "o direito aplicável ainda está pouco desenvolvido, com ausência de regras específicas". Isso "dá mais importância prática às decisões dos tribunais, porque vêm identificar os limites jurídicos à política e às decisões das empresas", explica a docente de Direito.

Além disso, e porque há poucas regras específicas, os tribunais estão a decidir sobretudo com base em regras e princípios comuns em Estado de Direito. "Isso significa que as decisões do tribunal de um Estado podem influenciar tribunais de outros Estados a decidir da mesma forma, ou com o mesmo tipo de fundamento. Por esse motivo, os tribunais influenciam-se mutuamente mesmo pertencendo a ordens jurídicas diferentes, e a decisão de um tribunal pode ter efeitos muito para lá dos limites da sua jurisdição", explica Heloísa Oliveira, dando conta ainda de que "mais de 50% dos casos de litigância climática tiveram decisões favoráveis à proteção ambiental, com consequentes alterações de leis e de políticas públicas, bem como limitações na execução de projetos".

Os principais visados da litigância climática são Estados e empresas. Combater o "greenwashing" está, por isso, também na mira da Último Recurso, que pretende "responsabilizar todas as entidades que violem as suas obrigações legais em matéria climática, independentemente do conteúdo dessa violação". "O ‘greenwashing’ é um fenómeno que tem vindo a crescer e que, de facto, põe em causa a ação climática eficaz e o caminho para a justiça climática", sublinha Maria Paixão.

Já Heloísa Oliveira assinala ainda o crescimento de ações contra empresas. "Neste momento, os fundamentos podem estar no direito da concorrência e na proteção do consumidor. Nos Estados Unidos da América há dezenas de ações contra petrolíferas; a Comissão Europeia recebeu uma queixa contra 17 companhias aéreas; a autoridade para proteção do consumidor e dos mercados dos Países Baixos proibiu a duas grandes empresas - que também operam no mercado português - a utilização de rótulos de sustentabilidade; e no Reino Unido também uma autoridade reguladora baniu certos anúncios de petrolíferas. Está sempre em causa a prestação de informação falsa e manipulada aos consumidores", refere.

E quem pode, afinal, recorrer a este instrumento e a quem se deve dirigir? Qualquer pessoa pode iniciar uma ação climática. Porém, a maioria das ações tem na sua origem organizações de proteção do ambiente. "Algumas dessas organizações são hoje autênticos escritórios de advogados especializados neste tipo de ações, utilizando todo o tipo de ferramentas jurídicas para atingir objetivos de proteção ambiental", explica a docente.
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