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Agricultura familiar pode ajudar a cumprir múltiplos ODS

Em plena Década da Agricultura Familiar, estipulada pela ONU, Portugal responde com um plano que quer promover um mercado de produtos agrícolas mais eficiente e, desta forma, agregar uma série de benefícios que vão desde a segurança alimentar e alimentação mais saudável da população à proteção da biodiversidade e resiliência do território. Tudo até 2030.

07 de Setembro de 2022 às 11:00
A agricultura familiar garante 80% dos alimentos consumidos no mundo. Em Portugal, é similar. Pexels
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A agricultura encontra-se numa encruzilhada. Sofre pressão para fornecer alimentos a preços acessíveis a uma população mundial em crescimento, ao mesmo tempo que tem de se adaptar para minorar os efeitos das alterações climáticas e a degradação de recursos naturais, incluindo a escassez de água, empobrecimento dos solos e perda de biodiversidade. Para alimentar o mundo de forma sustentável, é necessária uma mudança radical nos sistemas alimentares e, neste contexto, a agricultura familiar surge como a solução que responde em simultâneo a vários desafios da Agenda 2030, seja a nível ambiental, social ou económico.

"A agricultura familiar pode fazer muito pelo país: contribui para a saúde da população através de uma alimentação saudável, fomenta o emprego de muitas famílias, oferece uma produção e consumo sustentáveis, reduz a pegada de carbono através do consumo local, defende o território, combate a desertificação do interior, reduz as desigualdades, reduz o défice alimentar do país, que depende da importação de alimentos, ajuda a combater a pobreza e a fome, entre muitas outras coisas", começa por explicar Laura Tarrafa, especialista na área da agroecologia na Confederação Nacional da Agricultura.

A agricultura familiar tem um impacto positivo de tal ordem nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que a própria Organização das Nações Unidas (ONU) estipulou 2018-28 como a Década da Agricultura Familiar. O propósito é concentrar esforços da comunidade internacional para trabalhar coletivamente na implementação de políticas sociais, económicas e ambientais que fortaleçam a agricultura familiar em todo o mundo. A ONU pretende chamar a atenção para o facto de os agricultores familiares produzirem mais de 80% dos alimentos consumidos no mundo, empregam 30% da população mundial, mas, paradoxalmente, encontram-se entre os grupos populacionais mais vulneráveis à insegurança alimentar.

Para além das vantagens ambientais, sociais e económicas, num mundo com tensões multipolares e crises globais que põem em causa os circuitos normais de abastecimento, é a produção local que salvaguarda as populações. "A importância da agricultura familiar foi posta à prova na pandemia: não faltaram vegetais, fruta, legumes, carne ou leite aos consumidores portugueses e nunca, como nessa fase, os agricultores familiares conseguiram escoar as suas produções. Perante uma perturbação grave, que interrompe as cadeias de fornecimento, é o que está próximo do consumidor que oferece segurança no abastecimento", destaca Joana Dias, coordenadora da ACTUAR, uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que promove a conceção de sistemas alimentares sustentáveis.

Como país particularmente sujeito aos efeitos das alterações climáticas, nomeadamente calor, seca e incêndios, a agricultura familiar também pode ser uma arma importante de defesa do território. "Não é por acaso que hoje sentimos com muito mais violência os fenómenos extremos do clima e podemos dizer que estão ligados à transformação sofrida nas zonas rurais", destaca Laura Tarrafa, que acrescenta: "A expulsão das pessoas das zonas rurais deixou ao abandono o mosaico agroflorestal e as descontinuidades de serras com várias espécies florestais, que produzem alimentos, riqueza e fixam as populações. Estas condições impedem a progressão dos grandes fogos e garantem a presença de vegetação diversificada, nomeadamente de árvores autóctones, seja floresta ou agricultura, fundamentais para a conservação de matéria orgânica e o armazenamento de água, permitindo reduzir índices de seca e também são aliança no combate a incêndios."

Já aqui vimos que a agricultura familiar garante 80% dos alimentos consumidos no mundo. Em Portugal, é similar. Segundo dados divulgados no novo Plano Estratégico da Política Agrícola Comum de Portugal (2023-27), no final de agosto, cerca de 46% das explorações agrícolas do país são de dimensão muito reduzida, com menos de 2ha e 80% são de base familiar. Há cerca de 290 mil agricultores em Portugal, sendo que as mulheres agricultoras representam 39% desta mão de obra. Portugal tem ainda a população agrícola mais envelhecida da UE. Por cá, esta é uma atividade "ainda muito desconsiderada social, económica e politicamente e é esse estado de coisas que queremos mudar. O papel dos agricultores e das agricultoras familiares deve ser conhecido e reconhecido", assinala Joana Dias. Por isso, é preciso mudar a situação e "a primeira mudança que se impõe é considerar o setor como fundamental para o futuro sustentável do país", destaca a coordenadora da ACTUAR.

Um plano para Portugal

Nesta linha, promover a agricultura familiar é o que pretendem a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Direção-Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), a Escola Superior Agrária de Viseu (ESAV) e a ONGD ACTUAR, ao elaborarem o Plano para a Década da Agricultura Familiar em Portugal (PADAF), que propõe ao Governo uma série de medidas que fortaleçam a agricultura familiar até 2030. Portugal é, assim, um dos primeiros países a responder ao apelo da ONU para mobilizar a comunidade internacional e os governos para trabalhar dinâmicas sociais, económicas e ambientais que fortaleçam a agricultura familiar.

O PADAF resulta de um trabalho de campo participativo, tendo sido submetido a consulta pública. Apresenta diversas propostas legislativas para fortalecer a agricultura familiar, funcionando também como um guia com ações e metas organizadas em áreas prioritárias, desde políticas públicas necessárias, participação das mulheres ou defesa da sustentabilidade.

Não significa que não haja iniciativas e programas visando outra abordagem, mas o seu alcance é insignificante.
Francisco Sarmento
Consultor da FAO 
Uma das principais bandeiras do plano é alterar a legislação das compras públicas dos alimentos, considerando que não faz sentido que o Estado prefira os alimentos processados, na sua grande maioria importados, que não trazem valor à economia nacional e nem à saúde das pessoas. Segundo Francisco Sarmento, consultor da FAO e antigo representante da FAO em Portugal, no nosso país, os alimentos que entram nas cantinas das escolas, hospitais e restantes serviços públicos "são maioritariamente alimentos industrializados nacionais e importados, ou seja, inseridos em cadeias alimentares globais. Não significa que não existam iniciativas e programas visando outra abordagem, como é o caso da fruta nas escolas, mas o seu alcance é insignificante." Para os promotores do PADAF, com o sistema atual, estamos a falar de dinheiro público investido em alimentos de fraca qualidade que vão gerar doença que o SNS vai ter de tratar. Por isso, defendem ser urgente rever a legislação para criar o acesso dos agricultores familiares aos programas de compras públicas nacionais, regionais e locais. O PADAF defende, neste sentido, uma discriminação positiva para os agricultores familiares poderem aceder às compras públicas de alimentos. Tal medida seria importante para melhorar a qualidade dos produtos nos serviços públicos e também a vida destes agricultores. "É preciso alertar os consumidores, os governantes e os agricultores que, mais importante do que exportar, é reduzir as importações e sermos autossuficientes do ponto de vista alimentar. Comer uma laranja do Algarve ou uma laranja que vem da África do Sul não é a mesma coisa. A duas coisas têm impactos completamente diferentes no ambiente, na sociedade e na economia. E quem fornece os alimentos saudáveis, nutricionalmente mais ricos, com menores custos para a sociedade, é a agricultura familiar", refere Laura Tarrafa.

O PADAF propõe também a promoção dos circuitos curtos, uma vez que quanto mais curta for a distância entre a produção de alimentos e o nosso prato, melhor é para o ambiente, para a saúde e para a economia local. O plano propõe ainda a criação de um selo que estimule a diferenciação dos produtos e que permita ao consumidor saber que está a consumir alimentos provenientes da agricultura familiar. Para cumprir a Agenda 2030, são também propostas soluções para promover a inclusão social e a igualdade de género, entre outras medidas. "O que temos no PADAF é um verdadeiro ‘roadmap’ para chegarmos a 2030 com um país com autonomia e segurança alimentar, com uma população saudavelmente alimentada, com um mercado de produtos agrícolas eficiente e transparente e com agricultores familiares com produções rentáveis, ao mesmo tempo que se reduz a pobreza e se defende o território", sintetiza Joana Dias.

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