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O carteiro Paulo

Hesitei em escrever uma carta ao ex-jornalista, ex-ministro da Defesa, ex-líder do Partido Popular na oposição, ex-Paulinho das Feiras, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, actual vice-primeiro-ministro. As cartas a ministros estão a banalizar-se. E estou seguro que o Governo Paulo Portas irá receber muitas cartas endereçadas ao seu líder, provavelmente já da parte dos pensionistas viúvos.

A carta da China Three Gorges ao vice-primeiro-ministro é, por outro lado, uma peça digna do Museu do Oriente. Porque representa um novo capítulo na longa história nas relações luso-chinesas. A China faz o que tem de fazer, para defender os seus interesses. Mas a ameaça implícita na carta a propósito da anunciada taxa sobre a produção de electricidade deixa antever no que é que o Estado português se meteu por falta de dinheiro. Talvez Portas queira telefonar a Vítor Gaspar para ele resolver este e os próximos problemas com um Estado autocrático.


Mas a carta da China também fará, um dia, parte do espólio do Museu de Electricidade. Porque revela uma lógica especial sobre a actuação de um incumbente, entretanto privatizado. Os chineses, aparentemente tão inseguros do seu potencial económico, reclamam contra a alteração dos pressupostos da privatização, à conta de uma taxa que, segundo o Governo, deverá representar 100 milhões de euros. As estimativas preliminares apontam para uma "comichão" de 5% no lucro líquido da eléctrica, que há vários exercícios supera os mil milhões de euros anuais.

Os chineses enchem o peito, o Governo enche o peito e quando os esvaziarem ninguém perceberá a razão de tanta acrimónia, de um lado e do outro. Até porque será seguramente do interesse da China que a economia portuguesa recupere rapidamente a sua dinâmica e se liberte do jugo da troika, para que o consumo de electricidade possa recuperar da quebra de cerca de 5% sentida com a recessão. E a polémica taxa é um modesto contributo para isso, assim o accionista chinês da EDP entenda o papel que pode ter na economia, até por interesse próprio.

Já a eventual resposta de Portas aos chineses dificilmente será digna de museologia, num contexto marcado pelo branqueamento público do corte das pensões de sobrevivência. Será apenas mais uma etapa na sua imparável metamorfose.

Portas está a alienar, no Governo, grande parte da simpatia que foi angariando nas sucessivas campanhas eleitorais. Já não pode voltar a ser o Paulinho das Feiras, depois da vaga de austeridade a que vai dar a cara e independentemente das falsas batalhas com poderosos como a EDP.

Quando muito, se avançar outra das absurdas obrigações do memorando – vender os CTT, porque, segundo o próprio secretário de Estado, Sérgio Monteiro, a troika obriga, o Governo acredita e o défice precisa –, Portas poderá, na próxima campanha, vestir a farda e distribuir o seu correio populista nas aldeias que os novos donos dos Correios abandonarem. Aí poderá pregar a sua velha reza de que os governantes ignoram os mais fracos, mais velhos e mais pobres. E até pode entreter os mais novos, se se anunciar como Carteiro Paulo. Talvez lhe abram a porta. Porque como Paulinho das Feiras já não lha abrem.

* Editor de Empresas

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