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05 de Dezembro de 2013 às 00:01

Olof Palme e o socialismo ibérico

Neste período de profunda crise, o velho conselho do falecido primeiro-ministro sueco deveria elevar-se a verdade universal e ter-se sobretudo em consideração quando se acusa ministros das Finanças de não saberem fazer política.

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José Luís Zapatero também acaba de publicar um livro. Não sobre tortura, mas sobre "O Dilema" que viveu durante o que calcula terem sido os 600 dias mais loucos da crise do euro. Nele divulga uma carta datada de Agosto de 2010 do então presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, na qual em jeito de “memorando” são enumeradas as reformas que Espanha deveria encetar ou prosseguir para continuar a receber o apoio do banco central nos mercados de dívida. Tudo muitíssimo parecido com o que foi então feito com a Itália do imponderável Sílvio Berlusconi, só que, nesse caso, com muitíssimo mais estrondo e publicidade. Já com Espanha, a carta do BCE só deixou de ser "confidencial" porque o ex-primeiro-ministro socialista decidiu agora divulgar documentos de Estado num livro da esfera privada.

 

Para surpresa de muitos, na entrevista que concedeu ao "El País" por ocasião da publicação do livro e da proximidade do 35º aniversário da Constituição espanhola, Zapatero confessa-se um convicto adepto da estabilidade orçamental. Depois de andar dois anos a tentar combater a crise com mais despesa e dívida, Zapatero revela que, nesse mesmo Agosto de 2010, tomou a iniciativa de telefonar a Mariano Rajoy (líder do PP, hoje primeiro-ministro, então na oposição) para lhe pedir o apoio necessário para alterar a Constituição e inscrever-lhe a “regra de ouro”. Porquê? Porque percebeu que "ou tomava uma medida de fundo capaz de transmitir uma imagem de força e de credibilidade" ou Espanha acabava "com um Governo técnico” como tinha sucedido na Grécia, e tinha de tomar "medidas socialmente muito mais duras". Porque percebeu, acrescenta, que a "regra de ouro" é um princípio que se aplica em vários países nórdicos, onde existem os mais altos padrões de direitos e políticas sociais.

 

Francisco Assis, candidato derrotado por António Seguro à liderança do PS, fez eco dessa entrevista nesta semana num longo artigo de opinião no “Público”, no qual defende que as revelações do ex-primeiro-ministro socialista do país vizinho merecem reflexão – supõe-se que reflexão entre os socialistas portugueses que, com notáveis excepções (Luís Amado, desde logo e desde sempre), não vêem mérito na constitucionalização da “regra de ouro” que, grosso modo, limita os gastos do Estado ao que este consegue arrecadar em impostos.

 

A entrevista do ex-primeiro-ministro espanhol pode ser interpretada como uma conversão genuína, ainda que tardia, ao princípio de que a estabilidade financeira é imprescindível a um Estado social em que todos (e todas as gerações) possam efectivamente confiar. Mas ela é pobre e, nessa medida, até cobarde, na explicação das razões e do contexto que o levaram a cristalizar essa convicção.

 

Zapatero não diz, por exemplo, que, quando chega em Setembro de 2011 ao Parlamento para votar a alteração ao artigo 135 da Constituição, rodeado de um forte dispositivo policial para o proteger dos 'Indignados', já a Alemanha (logo em 2009) tinha inscrito o "travão do endividamento" na Lei Magna; já a França e Itália se preparavam para fazer o mesmo; já o próprio Tratado Orçamental estava também em marcha. Havia, sim, um contexto europeu, comandado por Berlim, ao qual Madrid começou por resistir e deixou de resistir.

 

Zapatero também nada diz também sobre os anos de pregação no deserto de Pedro Solbes sobre os limites e efeitos perversos de políticas expansionistas em países com dívidas públicas e privadas já elevadas. Sucede que o seu antigo ministro das Finanças e, antes disso, comissário europeu dos Assuntos Económicos, acaba também de publicar um livro.

 

Nas suas “Recordações", Pedro Solbes confessa que o "maior erro" em 41 anos de serviço público foi ter aceite permanecer no segundo Governo Zapatero. "Zapatero e eu tínhamos uma percepção distinta da crise”. Solbes achava que um programa de austeridade serviria melhor os interesses de médio e longo prazo do país. Mas Zapatero não queria que se falasse de crise. Na cabeça do primeiro-ministro, a Espanha que estava quase a ultrapassar a economia italiana e a seguir passaria à frente da francesa estava somente em “desaceleração” devido a uma crise financeira nascida fora das suas fronteiras. Falar de crise em Espanha - e nascida em Espanha - obrigaria a falar das suas causas, do modelo de crescimento assente no crédito barato que surgiu com o euro e com o qual o sector público e privado encheram a bolha imobiliária. Falar de crise suporia falar-se de responsabilidades governamentais, do erro de eventualmente prosseguir com obras públicas, devolução de impostos aos contribuintes ou cheques-bebés.

 

Em 2009, Solbes apresentou-lhe um plano de austeridade. A resposta do primeiro-ministro foi clara: "Pedro, este documento é inaceitável; o que propões [em cortes] pressupõe duas greves gerais". Solbes bateu com a porta logo a seguir.

 

Nesse mesmo ano de 2009, ano de eleições em Portugal, o Governo dava o maior aumento à função pública desde 2001: 2,9%, quatro décimas acima da previsão da inflação, que acabou por se revelar negativa. Teixeira dos Santos não mostrou publicamente divergências com José Sócrates até ao chumbo do PEC IV; depois dobrou-lhe a mão e forçou-o a pedir o resgate, em Abril de 2011. Hoje apoia as políticas da troika e tem pena que muitas delas não tenham sido realizadas muito mais cedo, como confirma na entrevista publicada nesta quinta-feira no Negócios.

 

Não é fácil traçar paralelos, mas não é difícil encontrar semelhanças entre o que se passou nestes últimos anos na Ibéria. Nem em Espanha, nem em Portugal, os primeiros-ministros conseguiram dar seguimento ao conselho de Olof Palme, segundo o qual os chefes de governo têm, antes de mais, de selar uma verdadeira coligação com os seus ministros das Finanças, desde logo para se oporem aos demais membros do governo, cuja função “natural” é gastar.

 

Em Espanha, Miguel Sébastian, presidente do gabinete económico de Zapatero e mais tarde ministro da Indústria, terá muitas vezes pesado mais do que Solbes nas decisões em Conselho de Ministros, talvez porque pensava mais como o primeiro-ministro. Por cá, persiste a suspeita de que era Pedro Silva Pereira, braço-direito de José Sócrates, quem também fazia frequentemente pender os pratos da balança.

 

Neste período de profunda crise, o velho conselho do falecido primeiro-ministro sueco deveria elevar-se a verdade universal e ter-se sobretudo em consideração quando se acusa ministros das Finanças de não saberem fazer política – como tantas vezes se ouviu e escreveu a propósito de Vítor Gaspar. Afinal, eles são muitas vezes os primeiros, senão os únicos, que governam sem o fito de ganhar as próximas eleições.

 

 

 

(Corrige nome ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme, não Palm )

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