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14 de Fevereiro de 2011 às 11:26

Reconstruir

Uma revolta cumpriu-se em 17 dias.

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Uma revolta cumpriu-se em 17 dias. A fúria arrebatadora dizimou um edifício que, pelo hábito de o vermos, nos parecia cristalizado para sempre. Mas uma revolta cumpriu-se em 17 dias. A liberdade ainda não venceu, vai demorar e vai doer, mas a clausura já perdeu.

Estes 17 dias foram uma história de amor. Um utopista e uma sonhadora, num telhado sobre Lisboa, já dá uma revolução. Também no Egipto, depois da Tunísia, o deflagrar foi puro, sem golpistas nem generais, com uma força irreprimível. Esta foi a primeira revolução com nascente nas redes sociais, nos jovens que, na internet, descobrem outros mares. E demonstrando que as redes sociais não matam a imprensa - pelo contrário, a revolta iniciada nas palavras da Internet foi protegida, porque exposta, pelas palavras dos jornais. O jornalismo, na sua escrita e nas suas imagens, é ainda o aliado mais poderoso das libertações. Estivemos todos os dias na Praça de Tahrir pelas letras de jornalistas. Letras como as de Paulo Moura, do Público, que na sexta-feira final e definitiva nos conta como "chorar é o primeiro apanágio da liberdade, o primeiro direito". Chorar faz bem. Não chorar é que mata.

No Egipto prosperava um dos regimes mais fortes do Médio Oriente - na base da opressão, da fome, da pobreza do seu povo. Mubarak contava que o movimento revoltoso se esgotasse e se carcomesse. Mas o tempo foi envolvendo cada vez mais, os sindicatos, os pobres, até que, no final, pendesse o Exército - menos terrível, afinal, do que parecia. E que tem agora nas mãos a chave do poder.

Isto tem futuro? Tem, mas é indefinível. Os diplomatas abrem o mapa e engolem em seco quando olham para o Irão ou para Israel. A inconstância é uma virtude muito desvalorizada (até o império romano desabou) mas, nos mercados, tudo (incluindo um ditador...) é preferível à imprevisibilidade. O preço do petróleo vai alisar, o Suez pode voltar a navegar calmo, ontem as bolsas já subiram e o Egipto até colocou dívida. Mas nada disto terá valido a pena se o "regime" que vier não servir para melhorar as condições de vida dos egípcios, reduzir a desigualdade, combater a miséria. "É a economia, pá!".

São precisos 365 dias para a Terra cercar o Sol mas 17 bastaram para que os egípcios deixassem de estar, como há tantos anos, sem essa luz. O tempo é-nos elástico, quantos dias são 17 dias? São muitas manhãs. Como uma música de Leonard Cohen. A praça de Tahrir não foi um espaço, foi esse tempo, que os egípcios nunca esquecerão. Mesmo que, depois da revolução, venham as desilusões (vêm sempre), e os egípcios sintam o peito engolido pela privação do êxtase, mesmo que dessem tudo o que venham a ter e roubassem o que faltasse para voltar àquele tempo, podem sentir-se abençoados por, por uma única e irrepetível vez, terem sido a força do amor que venceu a opressão. Foi no Cairo. Como noutras cidades. Budapeste, Tóquio, Paris, Lisboa.

Os 17 dias passaram, a história de amor chegou ao fim. Sobrou uma folha em branco. A praça Tahrir está em ruínas. Agora que se atiraram as pedras, o que se faz com elas? Ficam a jazer, lápides dispersas? Ou constrói-se um outro palácio, que não esconda os seus defeitos? Essa é tarefa de quem fica, não de quem parte. O Ocidente já resolveu o seu problema de consciência, os incréus despedem-se, os apaixonados voltam a calçar luvas de boxe e este será o último editorial sobre a revolta. Mas é agora que tudo verdadeiramente começa. Como um poema de Sophia: "Através do teu coração passou um barco/ Que não pára de seguir sem ti o seu caminho".


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