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Robert Shiller - Economista 20 de Dezembro de 2015 às 20:30

Crowdfunding ou Crowdphishing?

Para encontrar um exemplo que ilustre a dificuldade de fazer com que os mercados financeiros funcionem bem, basta olhar para os obstáculos e controvérsias em torno do crowdfunding nos Estados Unidos.

Depois de três anos de deliberações, a US Securities and Exchange Commission [SEC, autoridade reguladora do mercado de capitais dos EUA] emitiu, no mês passado, um regulamento final que permitirá o verdadeiro crowdfunding. Ainda assim, o novo quadro regulatório está muito aquém do que é necessário para impulsionar o crowdfunding em todo o mundo.

 

O verdadeiro crowdfunding, ou ‘equity crowdfunding’ [com a contrapartida de uma participação accionista],  refere-se às actividades de plataformas online que vendem acções de startups directamente a um grande número de pequenos investidores, dispensando os métodos tradicionais de financiamento, através de capital de risco ou banca de investimento. Mas, em vez de permitir que as pessoas vendam os seus móveis ao mundo inteiro, o crowdfunding está pensado de forma a arrecadar dinheiro rapidamente, de pessoas entendidas, para empresas que os banqueiros podem não compreender. Parece excitante, sem dúvida.

 

Os reguladores fora dos Estados Unidos têm sido, em geral, mais flexíveis, e já existem algumas plataformas de crowdfunding a funcionar. Por exemplo, a Symbid, na Holanda, e a Crowdcube, no Reino Unido, foram ambas fundadas em 2011. Mas o crowdfunding ainda não é um factor importante nos mercados mundiais. E isso não vai mudar sem uma regulação financeira adequada e inovadora.

 

Há uma barreira conceptual para a compreensão dos problemas que as autoridades podem enfrentar na regulação do crowdfunding, devido à incapacidade dos modelos económicos predominantes para explicar os aspectos tortuosos e manipuladores do comportamento humano. Os economistas geralmente descrevem o lado racional e honesto das pessoas, mas ignoram a sua duplicidade. Como resultado, subestimam os riscos do crowdsourcing.

 

Os riscos consistem não tanto em fraude declarada - mentiras descaradas que constituam delitos puníveis – mas sim em formas de logro mais subtis. Pode até ser um logro aberto, com os seus promotores a procurarem dissimular os defeitos fatais de um plano de negócios para que um aficcionado não os veja, ou a revelá-los de forma incompleta ou em letras miúdas.

 

Não é que as pessoas sejam completamente desonestas. Pelo contrário, geralmente orgulham-se da sua integridade. Só que a sua integridade sofre pequenos deslizes aqui e ali – e, em termos agregados, nem sempre são tão pequenos assim.

 

No meu livro mais recente, escrito com George Akerlof, Phishing for Phools: The Economics of Manipulation and Deception, argumentamos que o comportamento inescrupuloso tem de ser tido em conta na teoria económica. O equilíbrio económico em que vivemos deve ser considerado, acima de tudo, como um equilíbrio de enganos (phishing equilibrium), no qual a desonestidade individual se pode converter em algo sistematicamente mais importante quando é obra de organizações empresariais sujeitas a intensas pressões competitivas. É verdade que a competição premeia o inteligente e o trabalhador. Mas também o obriga, muitas vezes, a não andar muito longe da fronteira do engano subtil.   

 

As novas regras da SEC para o crowdfunding são complexas, porque abordam um problema complicado. O conceito subjacente ao crowdfunding é a dispersão de informações através de milhões de pessoas. A maioria das pessoas, até mesmo as mais inteligentes, podem não compreender a próxima grande oportunidade de negócios. O economista Friedrich Hayek explicou-o bem em 1945:

 

"Há sem dúvida um corpo de conhecimento muito importante, mas desorganizado, que não pode ser chamado de científico no sentido do conhecimento das regras gerais: o conhecimento das circunstâncias e lugar específicos. É com respeito a isto que praticamente todos os indivíduos têm alguma vantagem sobre todos os outros, no sentido de possuirem informações exclusivas que podem usar em benefício próprio, mas cujo uso só pode ser feito se as decisões que delas dependem estiverem nas suas mãos ou sejam tomadas com a sua cooperação activa".

 

O problema é que a promessa de genuínas "informações exclusivas" vem com a realidade da vulnerabilidade à fraude. É por isso que canalizar o conhecimento disperso em novos negócios requer um quadro regulamentar que favoreça o verdadeiramente esclarecido e honesto. Infelizmente, as novas regras de crowdsourcing da SEC não vão tão longe como deveriam.

 

A legislação norte-americana de 2012 que encarregou a SEC de definir normas para as plataformas de crowdfunding estipulou que nenhuma startup as pode usar para angariar mais de um milhão de dólares por ano. Se o objectivo era limitar a margem para a fraude, esta cláusula é praticamente inútil. Na verdade, incluir esta disposição foi um erro grave, que precisa de ser corrigido com a nova legislação. Um milhão de dólares não é suficiente, e este limite tenderá a limitar o crowdfunding às pequenas ideias.

 

Algumas das regras da SEC não funcionam contra a fraude. Em particular a que diz que as plataformas de crowdfunding devem fornecer canais de comunicação "através dos quais os investidores podem comunicar uns com os outros e com representantes do emissor sobre as ofertas disponibilizadas".

 

Essa é uma boa regra, fundamental para toda a ideia de crowdfunding. Mas não basta que a SEC expresse a sua fé no "debate transparente e sem censura entre os membros da comunidade".  Deve exigir que o intermediário que patrocina uma plataforma instale um sistema de vigilância que a proteja de interferências e da inclusão de comentários propagandistas falsos.

 

A SEC e outros reguladores poderiam ir ainda mais longe. Podiam levar os intermediários a criar uma plataforma que resumisse o historial e a reputação dos comentadores. Na verdade, porque não pagar àqueles que acumulam "likes" ou cujos comentários sobre as empresas emissoras se revelem valiosos ao subsequente sucesso das mesmas?


Para o sistema financeiro como um todo, o sucesso depende, em última instância, da confiança e da segurança, as quais, como a suspeita e o medo, são altamente contagiosas. Se o objectivo é que o crowdfunding alcance o seu potencial global, o crowdphishing deve ser evitado desde o início. É preciso que os reguladores definam as regras certas (e era bom que se apressassem).

Robert J. Shiller, prémio Nobel da Economia em 2013 e professor de Economia na Universidade de Yale, é co-autor do índice Case-Shiller dos preços das casas nos EUA. O seu último livro, em co-autoria com George Akerlof, é Phishing for Phools: The Economics of Manipulation and Deception.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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