Opinião
A grande fuga da China
Pode parecer estranho que um país com um excedente comercial de 600 mil milhões de dólares em 2015 deva preocupar-se com a fraqueza da moeda. Mas uma combinação de factores desencadeou uma torrente de saídas de capital.
Desde que 2016 começou, a perspectiva de uma grande desvalorização do yuan chinês tem pairado sobre os mercados globais como a espada de Dâmocles. Nenhuma outra fonte de incerteza, em termos de políticas, tem sido tão desestabilizadora. Poucos observadores duvidam que a China terá que deixar a taxa de câmbio do yuan flutuar livremente em algum momento durante a próxima década. A questão é quão dramático será o período de espera, com imperativos políticos e económicos a colidirem.
Pode parecer estranho que um país com um excedente comercial de 600 mil milhões de dólares em 2015 deva preocupar-se com a fraqueza da moeda. Mas uma combinação de factores, incluindo a desaceleração do crescimento económico e um relaxamento gradual das restrições sobre o investimento estrangeiro, desencadeou uma torrente de saídas de capital.
Os cidadãos privados já estão autorizados a tirar do país até 50 mil dólares por ano. Se um em cada 20 cidadãos chineses exercesse essa opção, as reservas de moeda estrangeira da China seriam exterminadas. Ao mesmo tempo, as grandes empresas chinesas têm recorrido a todo o tipo de estratégias para tirar dinheiro do país. Uma forma perfeitamente legal é emprestar em yuan e cobrar em moeda estrangeira.
Uma estratégia não tão legal é a de emitir facturas comerciais falsas ou inflacionadas - essencialmente uma forma de lavagem de dinheiro. Por exemplo, um exportador chinês pode facturar a um importador americano um preço de venda inferior ao que realmente recebe, com a diferença secretamente depositada em dólares numa conta bancária nos EUA (que, por sua vez, pode ser usada para comprar um Picasso).
Agora que as empresas chinesas têm comprado tantas empresas norte-americanas e europeias, a lavagem de dinheiro até pode ser feita dentro de portas. Não foram os chineses que inventaram esta ideia. Após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa arruinada estava sufocada pelos controlos cambiais, as saídas ilegais de capital atingiam, em média, 10% do valor do comércio ou mais. Sendo um dos maiores países comerciais do mundo, é praticamente impossível para a China manter um controlo rígido sobre as saídas de capital quando os incentivos para essas saídas se tornam grandes o suficiente.
De facto, apesar do gigantesco excedente comercial, o Banco Popular da China foi forçado a intervir fortemente para sustentar a taxa de câmbio – a tal ponto que as reservas de moeda estrangeira caíram em 500 mil milhões de dólares em 2015. Com controlos de capital permeáveis, o orçamento de guerra da China de 3 biliões de dólares não será suficiente para manter o forte indefinidamente. Na verdade, quanto mais as pessoas se preocupam com a descida da taxa de câmbio, mais depressa querem retirar o seu dinheiro do país. Esse medo, por sua vez, tem sido um factor importante na queda do mercado de acções da China.
Existe uma grande especulação no mercado de que os chineses vão realizar uma grande desvalorização da moeda, digamos 10%, de uma só vez, para enfraquecer o yuan o suficiente para aliviar a pressão descendente sobre a taxa de câmbio. Mas, além de servir de carne para canhão para personagens como Donald Trump, que acreditam que a China é um negociante injusto, seria uma escolha estratégica muito perigosa para um governo no qual os mercados financeiros não confiam. O principal risco é que uma grande desvalorização seria interpretada como uma indicação de que a desaceleração económica da China é muito mais grave do que as pessoas pensam, abrindo caminho para uma fuga de capitais ainda maior.
Não há forma de melhorar a comunicação com os mercados até que a China aprenda a produzir dados económicos credíveis. Foi uma grande notícia a revelação de que o PIB da China cresceu 6,9% em 2015, um pouco abaixo da meta oficial de 7%. Esta diferença deveria ser irrelevante, mas os mercados deram-lhe uma extrema importância, porque os investidores acreditam que as coisas devem estar mesmo muito más para o governo não manipular os números o suficiente para atingir o seu objectivo.
Um bom ponto de partida para as autoridades seria a criação de uma comissão de economistas que produzisse um conjunto mais realista e credível de dados históricos do PIB, que abrisse caminho a números mais fiáveis daqui para a frente. Em vez disso, a ideia imediata do governo para aliviar a pressão sobre a taxa de câmbio é ligar o yuan a um cabaz de 13 moedas, em vez de apenas ao dólar americano. É uma boa ideia, na teoria; na prática, a ligação a um conjunto de moedas tende a ter problemas crónicos de transparência.
Além disso, a ligação a um cabaz de moedas comporta a maioria dos problemas associados a uma simples indexação ao dólar. É verdade, o euro e o iene caíram face ao dólar nos últimos anos. Contudo, se o dólar desvaloriza em 2016, a ligação a um cabaz de moedas implica uma taxa yuan-dólar mais forte, o que poderá ser contraproducente. O governo também indicou que pretende reprimir mais fortemente as saídas de capital ilegais; mas não será fácil voltar a colocar o génio dentro da lâmpada.
A vida seria muito mais fácil hoje em dia se a China tivesse adoptado um grau muito maior de flexibilidade da taxa de câmbio quando as coisas iam bem, como alguns de nós aconselhámos por mais de uma década. Talvez as autoridades consigam manter o controlo em 2016; mas o mais provável é que yuan continue o seu caminho acidentado – e arraste consigo os mercados globais.
Kenneth Rogoff, antigo economista chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard.
Copyright: Project Syndicate, 2016.
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Tradução: Rita Faria