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Jean Pisani-Ferry - Director do Bruegel 06 de Agosto de 2018 às 14:00

A Europa é amiga ou inimiga da América?

Se a UE não conseguir definir-se a si própria para um mundo que é muito diferente do que existia há dez anos, provavelmente não sobreviverá como uma instituição significativa.

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Desde que Donald Trump se tornou presidente dos Estados Unidos em Janeiro de 2017, a sua conduta foi extraordinariamente errática, mas as suas políticas foram mais consistentes do que o previsto pela maioria dos observadores. A volatilidade de Trump tem sido desconcertante mas, no geral, agiu de acordo com as promessas feitas na campanha e com as opiniões que demonstrava antes de alguém considerar possível a sua eleição. Esta realidade levou ao surgimento de toda uma indústria informal dedicada ao desenvolvimento de teorias racionais sobre o comportamento aparentemente irracional de Trump.

 

O último desafio é dar sentido à sua posição em relação à Europa. No dia 28 de Junho, Trump disse: "Nós amamos os países da União Europeia. Mas a União Europeia, é claro, foi criada para se aproveitar dos Estados Unidos. E não podemos deixar que isso aconteça". Durante a sua recente viagem ao continente, chamou a UE de" inimiga" e disse que "possivelmente era tão má como a China". Em relação ao Brexit, declarou que a primeira-ministra britânica Theresa May deveria ter "processado" a UE. Depois vieram as tréguas, a 25 de Julho: Trump e Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, concordaram trabalhar em conjunto numa agenda de livre comércio e reforma da Organização Mundial do Comércio.

 

Parece que somos amigos de novo - ou talvez seja só uma pausa antes de recomeçar a disputa. Mas a questão mais profunda permanece: porque é que Trump atacou repetidamente o mais antigo e confiável aliado da América? Porque é que parece desprezar tanto a UE? Porque é que os EUA deveriam tentar prejudicar a Europa, em vez de procurarem uma cooperação mais estreita para proteger os seus interesses económicos e geopolíticos?

 

A abordagem de Trump é particularmente surpreendente dado que a rápida ascensão da China enquanto rival estratégica é a principal questão de segurança nacional dos EUA. Ao contrário do que se chegou a antecipar, a China não está a convergir com o Ocidente, nem política nem economicamente, porque o papel do Estado e do Partido Comunista na coordenação das actividades continua muito maior. Geopoliticamente, a China vem construindo clientelas de forma activa, mais visivelmente através da sua iniciativa Belt and Road, e pretende "fomentar um novo tipo de relações internacionais" que se afasta do modelo promovido pelos EUA no século XX. Em termos militares, o reforço também é evidente. Obviamente, é a China, e não a Europa, o desafio número um para a supremacia mundial dos EUA.

 

A estratégia do ex-presidente Barack Obama em relação à China combinou diálogo e pressão. Obama começou a construir duas alianças económicas que excluíam a China e a Rússia: a Parceria Transpacífico (TPP) com 11 outros países do Pacífico, e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) com a União Europeia. Mas Trump retirou os EUA da TPP e matou o TTIP à nascença. Depois, deu início a uma disputa comercial com a UE. E atacou tanto a UE como os seus Estados-membros, especialmente a Alemanha.

 

Existem três explicações possíveis. Uma é a peculiar obsessão de Trump com os saldos comerciais bilaterais. De acordo com essa perspectiva, Trump considera a Alemanha, o resto da Europa e a China como concorrentes igualmente ameaçadores. Ninguém mais acha que isso faz sentido, em termos económicos. E o único resultado que pode esperar desta estratégia é penalizar e enfraquecer a parceria atlântica de longa data. Mas Trump reclama com os carros da Mercedes nas ruas de Nova Iorque pelo menos desde os anos 1990.

 

Uma segunda explicação é que Trump quer impedir que a UE se posicione como o terceiro ‘player’ num jogo trilateral. Se os EUA pretendem transformar o relacionamento com a China numa luta bilateral pelo poder, há boas razões para considerarem a UE um obstáculo. Uma vez que ela própria se rege por normas, a UE é obrigada a opor-se a uma abordagem puramente transaccional das relações internacionais. E uma Europa unida que comanda o acesso ao maior mercado do mundo não é um actor trivial. Mas uma UE enfraquecida, se não mesmo desfeita, deixaria os países europeus fracos e divididos sem escolha a não ser unir-se aos EUA.

 

Por fim, uma leitura mais política do comportamento de Trump sugere que ele pretende uma mudança de regime na Europa. Na verdade, Trump acredita que a Europa está "a perder a sua cultura" porque deixou a imigração "mudar a sua estrutura". E Stephen Bannon, antigo estratega de Trump, anunciou que passará metade do seu tempo na Europa para ajudar a construir uma aliança de partidos nacionalistas e alcançar uma maioria nas próximas eleições para o Parlamento Europeu em Maio.

 

Há umas semanas só a primeira leitura parecia plausível. As outras duas poderiam ser descartadas como fantasias inspiradas em teorias da conspiração. Nunca nenhum presidente dos EUA havia apresentado a UE como uma conspiração para enfraquecer os EUA. Na verdade, todos os antecessores de Trump do pós-guerra teriam ficado horrorizados com a ideia de uma dissolução da UE. Mas o presidente dos EUA foi longe demais para a Europa poder descartar os cenários mais sombrios.

 

Para a UE, este é um momento crucial. Na década de 1950, foi lançada sob o guarda-chuva de segurança dos EUA e com a bênção da América. Desde então, foi construída como uma experiência geopolítica conduzida sob a protecção dos EUA e no contexto de um sistema internacional liderado pelos EUA. Por esta razão, as suas dimensões externas – económica, diplomática, ou de segurança – têm sido sempre secundárias em relação ao seu desenvolvimento interno.

 

O que a crise recente significa é que isto já não é verdade. A Europa deve agora definir a sua posição estratégica em relação a um poder americano mais distante e possivelmente hostil, e em relação a potências emergentes que não têm motivos para demonstrar amabilidade. Deve defender os seus valores. E deve decidir com urgência o que pretende fazer em relação à sua segurança e defesa, à sua política de vizinhança e à protecção das suas fronteiras. Este é um teste ácido.

 

Economicamente, a UE ainda tem potencial para ser um actor global. O tamanho do seu mercado, a força das suas grandes empresas, uma política comercial unificada, uma política regulatória comum, uma única autoridade da concorrência e uma moeda que só perde para o dólar são activos importantes. Poderia - e deveria - usá-los para fazer pressão no sentido de uma reformulação das relações internacionais que aborde as queixas legítimas dos EUA em relação à China e as legítimas preocupações da China sobre o seu papel internacional. A Europa desempenhou um papel de liderança no combate às alterações climáticas; poderia fazer o mesmo em relação ao comércio, investimento ou finanças.

 

O principal problema da Europa é político, não económico. O desafio que enfrenta vem numa altura em que está dividida entre ilha e continente, norte e sul, leste e oeste. E as questões que se colocam são fundamentais: O que define uma nação? Quem é responsável pelas fronteiras? Quem garante a segurança? A UE assenta em valores partilhados ou no puro cálculo dos interesses nacionais?

 

Se a UE não conseguir definir-se a si própria para um mundo que é muito diferente do que existia há dez anos, provavelmente não sobreviverá como uma instituição significativa. Pelo contrário, se o fizer, pode recuperar, aos olhos dos cidadãos, o sentido de propósito e legitimidade que foi corroído por anos de reveses económicos e políticos.

 

Jean Pisani-Ferry, professor na Hertie School of Governance em Berlim e na Sciences Po em Paris, é membro do think tank Bruegel.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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