Opinião
Re-governar a China
Orquestrar a transformação da China, para passar de um modelo económico baseado na manufactura e na exportação para um modelo fomentado pelo consumo e pelos serviços, é um empreendimento de grande envergadura.
O Fórum sobre o Desenvolvimento da China organizado este ano em Pequim revelou uma claríssima visão de como os líderes chineses pretendem realizar o "Sonho Chinês", que o presidente Xi Jinping descreveu como "um rejuvenescimento nacional, melhoria da qualidade de vida do povo, prosperidade, construção de uma sociedade melhor e reforço militar". A questão está em saber até que ponto é que o Governo consegue seguir em frente com a sua ambiciosa reforma e planos de desenvolvimento.
Em Novembro passado, o Terceiro Plenário do 18º Comité Central do Partido Comunista Chinês produziu mais de 330 grandes reformas em 60 áreas, para serem implementadas até 2020 – um pacote com uma escala, profundidade e complexidade sem precedentes. Orquestrar a transformação da China, para passar de um modelo económico baseado na manufactura e na exportação para um modelo fomentado pelo consumo e pelos serviços – e que seja inclusivo, ambientalmente sustentável e criador de mais de 13 milhões de empregos por ano – é um empreendimento de grande envergadura. Acrescente-se a isso o desafio de manter a estabilidade social e financeira – e concretizar tudo isto enquanto se gere uma das maiores burocracias do mundo – e a tarefa que se vislumbra é um verdadeiro quebra-cabeças.
Considerem-se os esforços realizados no Verão passado, no sentido de avaliar situação financeira do Governo. O Gabinete Nacional de Auditoria teve de mobilizar 55.400 membros do seu pessoal para avaliarem não só as contas do governo central, mas também as contas de 31 províncias e regiões autónomas, cinco municipalidades centrais, 391 cidades, 2.779 cantões e 33.091 comunidades rurais. A investigação abrangeu 62.215 agências e departamentos governamentais, 7.170 órgãos de financiamento dos governos locais, 68.621 unidades de reporte financiadas por dinheiros públicos, 2.235 unidades comerciais públicas e mais 14.219 entidades – responsáveis, no seu conjunto, por 730.065 projectos e 2.454.635 elementos de dívida.
Claramente, a governação do sector público na China é radicalmente diferente da que se vê no Ocidente, onde o Estado de direito, as eleições democráticas e o mercado livre são normais estruturais. E apesar de 35 anos de grandes reformas terem operado transformações consideráveis, com o sector privado a ser actualmente responsável pelo grosso da criação de empregos, há ainda muito a fazer na China – uma vez que o Estado, especialmente os governos locais e as empresas públicas, tem ainda as rédeas da concessão de crédito no país.
Uma forma de observar a complexidade do ecossistema de governação da China consiste em analisar a matriz das relações entre instituições, a tiao tiao kuai kuai – literalmente, "verticalidade e horizontalidade". A Tiao tiao refere-se às linhas verticais de controlo das instituições a nível local por parte do governo central, através de ministérios ou agências nacionais. Elas incluem o planeamento central no que diz respeito ao desenvolvimento e às reformas; a nomeação e promoção de funcionários para importantes cargos em ministérios, empresas públicas e governos locais a todos os níveis, bem como as ferramentas macroeconómicas, especialmente no que diz respeito às políticas orçamentais, monetárias, cambiais e regulatórias. A Kuai kuai refere-se às relações laterais e grandemente competitivas entre as entidades regionais, nas quais o governo central delega alguma autonomia.
Para se alcançar uma estabilidade genuína, os líderes chineses têm de conseguir instaurar um equilíbrio subtil entre o controlo exercido pela tiao tiao e a autonomia dada pela kuai kuai. Mas isso tem-se revelado difícil, com a flexibilização da autoridade da tiao tiao a conduzir muitas vezes não só a um rápido crescimento regional e a melhorias nos serviços públicos locais, mas também a um aumento dos desequilíbrios e a um maior risco de sobreaquecimento, devido aos comportamentos gregários pró-ciclícos, como o excessivo investimento nos activos fixos. O Governo vê-se assim obrigado a impor de novo o controlo central, e de forma abrupta, travando os progressos realizados. Se a economia chinesa fosse um automóvel, os líderes do país estariam sempre a acelerar a toda a força ou a travar a fundo.
Com este mais recente conjunto de reformas, o Governo da China está finalmente a tentar afinar a sua abordagem. O pacote centraliza algumas responsabilidades, como a gestão da resistência por parte dos interesses instituídos, ao mesmo tempo que reforça a autonomia dos governos locais noutras áreas, como os processos de aprovação de licenças e outras planificações. Com a criação de zonas de comércio livre – com preços mais baixos e menores barreiras alfandegárias, bem como uma menor intervenção administrativa – o Governo está a tentar dar às forças de mercado um papel decisivo na alocação de recursos.
Este esforço de flexibilizar os condicionalismos desnecessários que pesam sobre as entidades regionais levará a inovações no mercado e nas instituições. Essas inovações, de par com uma maior transparência e com a implementação de tecnologias de ponta, deverão reduzir a corrupção e a busca de enriquecimento pessoal, ao mesmo tempo que deverão impulsionar significativamente a produtividade e o emprego.
A recente decisão do Governo de eliminar progressivamente o sistema de registo dos agregados familiares (hukou) deverá favorecer ainda mais estas evoluções positivas, uma vez que dará tanto aos trabalhadores como aos donos de empresas privadas a oportunidade de escolherem onde querem viver, trabalhar e investir. Conforme os líderes chineses reconheceram explicitamente no Terceiro Plenário, a eliminação dos controlos arbitrários tiao tiao pode permitir às cidades e comunidades locais evoluírem de acordo com as suas próprias vantagens comparativas.
No entanto, a gradual abertura da China permitirá cada vez mais que as empresas e indivíduos possam transpor as barreiras nacionais, em busca de oportunidades mais lucrativas, complicando assim ainda mais a matriz de governação do país. Com efeito, a concorrência global em torno dos mercados, recursos, talento e necessidade de reconhecimento exigirá uma interacção bidireccional entre a China e os sistemas de governação mundial.
Os líderes da China já demonstraram que compreendem a necessidade de introduzir modernas técnicas de gestão, e que para isso será preciso actualizarem e recalibrarem as ferramentas do controlo central em que sempre se apoiaram. Com os ajustamentos certos, o sistema de governação chinês poderá conseguir lidar eficazmente com as falhas de mercado, como a poluição do ar e da água, a segurança alimentar, a eficiência energética e a desigualdade social, ao mesmo tempo que assegura a prosperidade de longo prazo do país.
Este processo ainda agora começou, mas o arranque foi sólido.
Andrew Sheng é um destacado membro do Fung Global Institute e membro do Conselho de Assessoria do UNEP [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente] sobre Finanças Sustentáveis. Xiao Geng é director de investigação no Fung Global Institute.
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Tradução: Carla Pedro