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27 de Dezembro de 2012 às 00:01

Os limites morais dos mercados

Actualmente, existem poucas coisas que o dinheiro não pode comprar. Se você for sentenciado a uma pena de prisão em Santa Barbara, Califórnia, e não gostar das instalações padrão, pode comprar uma cela melhor por cerca de 90 dólares por noite.

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Se quiser ajudar a evitar o trágico facto de, todos os anos, milhares de bebés nascerem de mães viciadas em droga, pode contribuir para uma instituição de caridade que usa um mecanismos de mercado para melhorar o problema: 300 dólares, em dinheiro, para qualquer mulher viciada em drogas que queira ser esterilizada.

 

Ou, se quiser estar presente numa audição do Congresso norte-americano, mas não quiser esperar durante horas na fila, pode recorrer aos serviços de uma empresa de espera na fila. A empresa contrata pessoas sem-abrigo, e outras pessoas que precisam de trabalho, para ficarem à espera na fila - mesmo durante a noite, se necessário. Pouco antes do início da audição, o cliente que pagou pelo serviço pode ocupar o seu lugar na fila e reivindicar um lugar na primeira fila da sala de audições.

 

Há alguma coisa de errado na compra e venda destas coisas? Alguns dirão que não; as pessoas devem ser livres de gastar o seu dinheiro para comprarem o que quer que seja que outras estejam dispostas a vender. No entanto, há quem considere que há algumas coisas que o dinheiro não deveria poder comprar. Mas porquê? O que é que está errado com a venda de "upgrades" de celas de uma prisão a quem pode pagar por isso, ou com a oferta de dinheiro pela esterilização ou com a contratação de pessoas para ficarem em filas de espera?

 

Para respondermos a perguntas como estas, temos de colocar uma pergunta mais vasta: que papel é que o dinheiro e os mercados devem desempenhar numa boa sociedade?

Colocar esta questão, e debatê-la politicamente, é agora mais importante do que nunca. As últimas três décadas assistiram a uma revolução silenciosa, à medida que os mercados e o pensamento orientado para os mercados atingiam esferas da vida anteriormente regidas por valores não comercializáveis: a vida familiar e as relações pessoais; a saúde e a educação; a protecção do ambiente e a justiça criminal; a segurança nacional e a vida cívica.

 

Quase sem nos apercebermos disso, deixámos de "ter" economias de mercado para nos "transformarmos" em sociedades de mercado. A diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta - uma ferramenta valiosa e eficaz - para a organização da actividade produtiva. Uma sociedade de mercado, em contrapartida, é um local onde quase tudo se pode colocar à venda. É uma forma de vida em que os valores de mercado se infiltram nas relações sociais e regem todos os domínios.

 

Deveríamos preocupar-nos com esta tendência, por duas razões. Em primeiro lugar, como aparece mais dinheiro nas nossas sociedades, a riqueza - e a sua ausência - importam mais. Se as principais vantagens da riqueza fossem a capacidade de comprar iates e belas férias, a desigualdade importaria menos do que de facto importa actualmente. Contudo, uma vez que o dinheiro rege o acesso à educação, aos cuidados de saúde, à influência política e a bairros seguros, a vida torna-se mais difícil para quem vive de meios modestos. A mercantilização de tudo aguça o aguilhão da desigualdade.

Uma segunda razão para resistirmos a colocar um preço em todas as actividades humanas é que fazê-lo pode ser corruptor. A prostituição é um exemplo clássico. Há quem se oponha à prostituição, alegando que explora tipicamente os pobres, para quem a escolha de vender o corpo poderá não ser verdadeiramente voluntária. Mas outros opõem-se porque consideram que reduzir o sexo a uma mercadoria é inerentemente degradante e objectivante.

 

A ideia de que as relações comerciais podem corromper bens mais elevados não se restringe a questões de sexo e do corpo. Aplica-se também a bens e práticas cívicas. Pense no acto de votar. Não permitimos um mercado livre nas votações, mesmo que um tal mercado pudesse ser "eficiente" no sentido economista do termo. Muitas pessoas não usam os seus votos, por isso porquê deixá-las desperdiçá-los? Por que é que não se permite que aqueles que não se importam muito com o resultado de uma eleição possam vender os seus votos a quem de facto de importa? Ambas as partes da transacção ficaram melhor.

 

O melhor argumento contra um mercado de votos é o de que o voto não é um pedaço de propriedade privada; em vez disso, é uma responsabilidade pública. Tratar um voto como um instrumento de benefício seria degradá-lo, corromper o seu significado de manifestação de um dever cívico.

 

Mas se um mercado de votos é objectável pelo facto de corromper a democracia, o que dizer dos sistemas de financiamento de campanhas (incluindo o que vigora actualmente nos Estados Unidos) que conferem aos doadores abastados uma voz desproporcional nas eleições? A razão para rejeitar um mercado de votos - preservando a integridade da democracia - poderá ser também uma razão válida para limitar as contribuições financeiras para os candidatos políticos.

 

É claro que discordamos frequentemente sobre o que se contabiliza como "corruptor" ou "degradante". Para decidirmos se a prostituição é degradante, temos de decidir a forma adequada de avaliar a sexualidade humana. Para decidirmos se vender celas "melhoradas" corrompe o significado da justiça criminal, temos de determinar o objectivo que a punição criminal deve servir. Para decidirmos se devemos permitir a compra e venda de órgãos humanos para transplante, ou a contratação de mercenários para combaterem as nossas guerras, temos de pensar nas árduas questões da dignidade humana e da responsabilidade cívica.

 

Estas são questões controversas e tentamos muitas vezes evitar lidar com elas nos discursos públicos. Mas é um erro. A nossa relutância em abordar, na política, questões moralmente contestadas, deixou-nos mal preparados para deliberarmos sobre uma das mais importantes questões da nossa época: quando é que os mercados servem o bem público e em que situações é que eles não se adequam?

 

Michael J. Sandel é professor de Filosofia Política na Universidade de Harvard. O seu livro mais recente intitula-se " What Money Can't Buy: The Moral Limits of Markets" e foi com base nele que este texto foi escrito.

 

Tradução: Carla Pedro

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