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18 de Dezembro de 2017 às 14:00

O longo e sinuoso caminho até à amortização da dívida

A reestruturação da dívida soberana tem uma história longa e frequentemente tortuosa. Poucos foram os casos que se resolveram de forma rápida ou amigável e esses são normalmente casos em que a reestruturação envolve apenas algumas concessões em matéria de taxa de juro e uma extensão das maturidades da dívida ainda por reembolsar.

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Os incumprimentos estão de volta. As finanças soberanas resistiram melhor do que se esperaria à violenta recessão global e à queda dos preços das matérias-primas nos últimos anos, mas um modelo económico fracassado não pode durar para sempre e a lenta sangria das economias de Porto Rico e da Venezuela obrigou os seus governos a dizerem "não podemos mais" ao reembolso dos credores.

 

Em inícios deste ano, Porto Rico declarou-se em incumprimento no pagamento da dívida. Nessa ocasião, aquele território não incorporado dos Estados Unidos apresentava uma dívida de cerca de 70 mil milhões de dólares e mais 50 mil milhões de dólares de passivo em matéria de pensões. Tratou-se, assim, da maior declaração de falência "municipal" da história norte-americana.

 

A crise da dívida ocorreu após mais de uma década de recessão (o PIB per capita de Porto Rico atingiu um pico em 2004), de queda de receitas e de uma diminuição marcada da sua população. Essa tendência demográfica era ainda mais inquietante pelo facto de serem os mais jovens que saíam da ilha de Porto Rico à procura de melhores oportunidades no continente norte-americano. E em Setembro, num contexto de dificuldades económicas cada vez piores, o furacão Maria sacudiu a ilha e os seus residentes de forma devastadora e as suas consequências irão sentir-se durante anos, se não mesmo décadas.

 

Mais recentemente, em meados de Novembro, a Venezuela deixou de conseguir reembolsar a sua dívida soberana externa, bem como as dívidas detidas pela petrolífera estatal PDVSA. Mas, muito antes desta manifestação de incumprimento nacional, já a dívida interna oficial (fosse explicitamente ou através de uma hiperinflação desenfreada) estava em situação de "default".

 

Além de o governo venezuelano e a PDVSA deverem cerca de 60 mil milhões de dólares a obrigacionistas estrangeiros, estima-se que devam também um montante comparável (se não mesmo superior) à Rússia e à China. Segundo o mais recente World Economic Outlook do Fundo Monetário Internacional, o PIB per capita real da Venezuela encolheu perto de 40% desde 2008. Prevê-se que em 2022 a perda acumulada deixe o rendimento per capita a cerca de metade do seu nível de há uma década. Mas mesmo um desmoronamento económico dessa dimensão, que é raro fora de épocas de guerra, subestima o grau de sofrimento humano implícito na prolongada escassez de alimentos e medicamentos que atinge o país.

 

A reestruturação da dívida soberana tem uma história longa e frequentemente tortuosa. Poucos foram os casos que se resolveram de forma rápida ou amigável e esses são normalmente casos em que a reestruturação envolve apenas algumas concessões em matéria de taxa de juro e uma extensão das maturidades da dívida ainda por reembolsar. Habitualmente não implicam a amortização de uma parte substancial do capital em dívida. Por outras palavras, não há um "haircut" [amortização da dívida com perdão parcial da mesma] significativo para os credores e o Estado devedor só consegue, no melhor dos casos, um alívio limitado.

 

Obviamente, existem grandes diferenças entre Porto Rico e a Venezuela no que diz respeito às origens das suas crises económicas, dos seus sistemas políticos, das suas relações com os EUA e com o resto do mundo, e outros aspectos. No entanto, é provável que, conforme a saga das suas dívidas se for desenrolando, comecem a surgir algumas similaridades notáveis.

 

Para começar, em ambos os casos é quase garantido que não haverá uma resolução rápida (ou perto disso). Tal como eu e Christoph Trebesch documentámos, o processo – muitas vezes hostil – de negociação do processo de resolução entre os devedores soberanos e seus credores costuma ser demorado. As primeiras cláusulas dos acordos de reestruturação costumam ser demasiado tímidas face ao "haircut" que é necessário para se restaurar a solvência do devedor. Consequentemente, os esforços de reestruturação costumam avançar em pequenas etapas.

 

Além disso, este padrão é visível quer os credores sejam obrigacionistas (como no caso da dívida de Porto Rico e de metade da dívida da Venezuela), bancos comerciais ou credores oficiais (como no caso da Grécia). A título de exemplo, entre inícios da década de 1980 e 1994, o Brasil passou por seis acordos distintos de reestruturação da dívida externa, e a Polónia contou com oito, antes de o Plano Brady possibilitar uma reestruturação de maior amplitude que permitiu restaurar a sustentabilidade da dívida no médio prazo.

 

Outro ponto em comum entre Porto Rico e a Venezuela poderá vir da gravidade dos prejuízos económicos que já sofreram. O nosso estudo aponta para que a dimensão do "haircut" acumulado possa estar ligada à magnitude da contracção económica do país. E no que diz respeito a Porto Rico e à Venezuela, a capacidade de pagamento de ambas as economias está muito limitada pelas suas escassas perspectivas de recuperação.

 

Tendo apenas isto por base, estes "haircuts" estarão, muito provavelmente, entre os maiores da história. A precedente reestruturação da dívida da Venezuela, durante a crise dos mercados emergentes nos anos de 1980, implicou um perdão de quase 40% da dívida. Um estudo de Juan Cruces e Trebesch, que fornece estimativas para a dimensão das amortizações de dívida, mostra que em praticamente metade dos 64 episódios de reestruturação ocorridos entre 1980 e 2011, o "haircut" acumulado acabou por ascender a mais de 50%. Em 15 casos, mais de 75% do valor nominal da dívida externa foi amortizado.

 

Ainda é cedo para o dizer, mas as recentes propostas – ambiciosas – destinadas a ajudar Porto Rico poderão facilitar a reestruturação da sua dívida. No caso da Venezuela, o regime cada vez mais questionável de Nicolás Maduro e a incerteza gerada pelas exigências simultâneas de vários credores (de um lado, os obrigacionistas ocidentais, e do outro os credores russos e chineses que acordaram créditos garantidos – empréstimos colateralizados) são dois factores que criam um clima propício a um processo de longa duração que deverá culinar em "haircuts" substanciais. Os credores terão de baixar a fasquia das suas expectativas, mas a verdadeira tragédia será sentida pelos cidadãos comuns, para quem o processo de reestruturação da dívida implicará um longo período de empobrecimento crescente.

 

Carmen Reinhart é professora de Sistema Financeiro Internacional na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
A acompanhar este texto há um gráfico que pode ser descarregado aqui.

Tradução: Carla Pedro

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