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26 de Novembro de 2017 às 14:00

O curioso caso da falta de incumprimentos

Hoje, as condições mundiais de liquidez não estão tão apertadas, nem de forma tão vincada nem tão rapidamente, como na fase da falência dos ciclos anteriores.

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Os booms e as bolhas nos preços das matérias-primas e nos movimentos de capitais internacionais, bem como os caprichos das taxas de juro internacionais, estão há muito associadas às crises económicas, em especial – mas não em exclusivo – nos mercados emergentes. O "tipo" de crise varia no tempo e no lugar. Por vezes, uma "paragem súbita" nos fluxos de capital provoca um crash cambial, por vezes uma crise bancária, e muitas vezes o incumprimento de um país. Crises duplas ou triplas não são incomuns.

 

O impacto destas forças mundiais nas economias abertas, e na forma como são geridas, tem sido durante décadas um tópico de discussão recorrente entre os políticos internacionais. Com a perspectiva da Reserva Federal dos EUA subir as taxas de juro no curto ou médio prazo, talvez não seja surpreendente que a 18ª Annual Research Conference do Fundo Monetário Internacional, que decorreu a 2 e 3 de Novembro, fosse dedicada ao estudo e à discussão do ciclo financeiro mundial e como isso poder afectar os fluxos de capitais transfronteiriços.

 

Subir as taxas de juro internacionais tem sido, geralmente, más notícias para os países onde o governo e/ou o sector privado dependem de financiamento externo. Mas para muitos mercados emergentes, as condições externas começaram a piorar por volta de 2012, quando o crescimento económico da China abrandou, os preços das matérias-primas caíram e os fluxos de capital secaram – desenvolvimentos que desencadearam uma vaga de choques cambiais que abrangeu quase todas as regiões.

 

No meu recente trabalho com Vincent Reinhart e Christoph Trebesch, mostro que durante os últimos dois séculos, esta "dupla falência" (nas matérias-primas e nos fluxos de capital) levou a um pico nos incumprimentos (defaults) soberanos, frequentemente com um desfasamento entre 1 e 3 anos. Ainda assim, desde o pico dos preços das matérias-primas e dos fluxos de capitais mundiais em 2011, a incidência de incumprimentos soberanos cresceu apenas de forma moderada.

 

Usando um modelo com quase 200 anos de dados, utilizado para prever a percentagem de países em incumprimento, as previsões são consistentemente mais elevadas do que o que foi concretizado até à data. Este é o caso da falta de defaults.

 

A advertência, como o nosso estudo destaca, é que há um potencial para uma avaliação incorrecta da "verdadeira" incidência do incumprimento, que não podemos começar a quantificar nesta altura – nomeadamente, incumprimentos ou atrasos acumulados nos empréstimos chineses. Os empréstimos chineses a muitos mercados emergentes, sobretudo a produtores de matérias-primas, cresceram significativamente durante o último boom. Apesar de a maioria destes empréstimos ter sido concedida por fontes chinesas oficiais, grande parte não está reflectida nos dados do Banco Mundial, e pode haver montantes desconhecidos que podem não estar a ser pagos ou estarem com atrasos prolongados.

 

Este estado das coisas descreve a situação num número de produtores africanos de matérias-primas e na Venezuela. Enquanto a companhia petrolífera venezuelana, que é gerida pelo governo, continua a servir as suas obrigações externas (e é por isso que não aparece nenhum incumprimento nos livros das agências de rating), as dívidas à China estão atrasadas.

 

Colocando de lado as questões das avaliações erradas, há dois tipos de explicações para a falta de incumprimentos. A primeira é que as economias de mercado emergentes são mais resilientes nesta altura. Esta visão, que sugere uma mudança estrutural, foi enfatizada em Outubro passado durante um dos encontros anuais do FMI/Banco Mundial mais optimistas da memória recente, e a mensagem teve eco num artigo da The Economist, que se chamava "Freedom from financial fear".

 

Estudos recentes sugerem que menos políticas monetárias e orçamentais pró-cíclicas e medidas macroprudenciais mais fortes durante a fase de fluxos ou de boom pode ter deixado os países numa situação mais sólida para lidar com súbitas reversões de fluxos de capitais. No passado, era muito comum os políticos convencerem-se que um boom nos preços das matérias-primas e a subida das receitas governamentais associadas era permanente. Os gastos do governo iriam então aumentar durante o boom, para depois serem reduzidas à medida que as receitas afundam com a queda dos preços das matérias-primas. Além das pró-cíclicas decadentes, as políticas macroprudenciais e os controlos de capital parecem ajudar a restringir a intensidade dos booms de crédito agregados e das bolhas nos activos, com a aplicação de políticas durante o boom para melhorarem a resiliência económica durante a falência.

 

O segundo tipo de explicação foca-se em factores externos. Os maiores ímpetos mundiais nos incumprimentos soberanos seguem-se geralmente a uma reversão nos fluxos de capital, que coincide com uma subida das taxas de juro internacionais. Os piores desfechos (categoria 5 nos furacões de dívida) envolvem um triplo golpe na classe dos importadores de capital (os produtores de matérias-primas).

 

Hoje, as condições mundiais de liquidez não estão tão apertadas, nem de forma tão vincada nem tão rapidamente, como na fase da falência dos ciclos anteriores. As taxas de juro excepcionalmente baixas e estáveis atenuaram as dificuldades do serviço da dívida entre os países devedores e pode também ajudar a explicar a falta de incumprimentos.

 

Em suma, apesar de haver provas que sugerem que a gestão macroeconómica dos fluxos de capitais tem estado a melhorar ao longo do tempo nos mercados emergentes enquanto um todo, é possível recordarmos a crise financeira mundial de 2007-2009, uma visão amplamente aceite de que as economias avançadas domaram os ciclos económicos. Isto era uma era de curta duração chamada de Grande Moderação.

 

Talvez esta mudança seja estrutural. Mas uma interpretação mais cautelosa da falta de incumprimentos é que a natureza prolongada da recessão nas condições internacionais ainda vai ter de aplicar a sua taxa cumulativa, ou essas fraquezas persistentes vão tornar-se evidentes assim que os principais bancos centrais continuem a normalizar as suas políticas.


Carmen Reinhart é professora de Sistema Financeiro Internacional na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro

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