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05 de Maio de 2014 às 12:40

A Farsa da União Bancária Europeia

Depois de uma maratona negocial de 16 horas, que terminou a 20 de Março, políticos, tecnocratas e jornalistas não tiveram dúvidas em declarar que o último pilar da união bancária europeia foi um sucesso. Mas as aparências iludem.

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Apesar de a “união bancária” poder vir a estar no papel em breve, na prática, o sistema bancário da Zona Euro deve continuar fragmentado de acordo com as fronteiras de cada país, e dividido entre um núcleo a Norte, no qual os governos continuam a apoiar os bancos locais, e a periferia do sul, onde os governos já gastaram o dinheiro todo.

 

Voltemos a Junho de 2012. Os bancos espanhóis que faliram ameaçavam arrastar o País para o fundo, tal como os bancos irlandeses haviam feito ao estado irlandês 18 meses antes, ao mesmo tempo que o pânico se espalhava rapidamente pela Zona Euro. Os líderes europeus resolveram cortar o elo de ligação entre bancos fracos e governos sem liquidez. Uma união bancária europeia iria elevar a responsabilidade por lidar com falências bancárias para o nível da Zona Euro – tal como nos EUA, onde um banco em apuros, digamos, na Florida, fica nas mãos das autoridades federais, que têm o poder de resgatar os titulares de obrigações, injector fundos federais e fechar as instituições financeiras.

 

Mas, um mês mais tarde, o Banco Central Europeu interveio finalmente para acabar com o pânico. Com isso salvou o euro, mas também aliviou a pressão sobre a Alemanha para que esta cedesse o controlo dos seus bancos que estão permanentemente com problemas. Desde então, o governo alemão usou a sua influência para estripar a união bancária proposta; tudo o que resta é uma carcaça para manter as aparências.

 

Para quem só agora está a começar, a união bancária não se vai aplicar às enormes perdas que se verificaram durante a actual crise. O BCE vai supervisionar directamente os maiores bancos da Zona Euro a partir de Novembro (o primeiro passo da união bancária), e está agora a avaliar a robustez dos seus balanços. Se este exercício for bem feito – e este é um grande “se” – os bancos descapitalizados que são viáveis vão ser forçados a aumentar os capitais próprios, junto dos titulares das obrigações, se for necessário, enquanto que os que não são viáveis vão fechando gradualmente.

 

Mas as regras europeias sobre a resolução nacional de bancos não vão estar logo em vigor, já que o mecanismo único de resolução só começa a funcionar em 2015. Por isso, os bancos da Europa do Norte que ainda são apoiados por governos que têm a confiança dos mercados vão ser tratados de forma diferente dos bancos da Europa do Sul, que está sem dinheiro: a Alemanha vai poder resgatar os seus bancos; a Itália não.

 

Muito provavelmente, o BCE vai falsificar o exercício, com medo de reacender a crise financeira e a pressão dos diferentes governos. Os países pequenos vão ser escolhidos para fazer com que o exercício pareça mais duro, enquanto os maiores problemas vão ser varridos para debaixo do tapete: os bancos alemães já conseguiram que vários dos seus activos ficassem de fora da análise.

 

Um dos argumentos para que seja o BCE o fiscalizador dos bancos da Zona Euro é o facto de ter sido menos capturado por eles do que foram os supervisores nacionais. Mas o comportamento do BCE durante a crise sugere o contrário. O BCE favoreceu repetidamente os interesses dos bancos nos países do “núcleo” do Norte da Europa e provou ser mais permeável às pressões políticas de Berlim e Paris do que de Madrid ou Roma, quanto mais Dublin ou Atenas.

 

Mesmo depois de o novo quadro regulatório entrar totalmente em vigor, ainda vai estar cheio de buracos. Devido à insistência da Alemanha, o BCE só vai supervisionar os 130 maiores bancos da Zona Euro. Isso vai deixar os Ländesbanks (bancos públicos regionais), muitos dos quais tomaram decisões de crédito espectacularmente más nos anos da bolha imobiliária, mas também os Sparkassen (bancos de poupança mais pequenos) nas mãos dos políticos locais e nas mãos do permeável regulador financeiro alemão.

 

O argumento de que os bancos mais pequenos não são um risco sistémico é falso: veja-se o que aconteceu com as cajas espanholas. De qualquer modo, o jogo não vai ser equilibrado.

 

Acima de tudo, o mecanismo único de resolução é uma miragem, porque os governos têm direito de veto sobre o encerramento de qualquer banco. O mecanismo é propositadamente complexo, ao ponto de ser impraticável; é inconcebível que um banco seja fechado num fim-de-semana para evitar causar o pânico nos mercados. E os fundos colectivos que poderão ser colocados ao seu dispor são escassos: uns meros 55 mil milhões de euros (76 mil milhões de dólares).

 

Por isso, na prática, o resgate dos bancos vai continuar nas mãos dos governos nacionais, que foram todos capturados pelos “seus” bancos mas cuja capacidade de os resgatar varia: os bancos franceses e alemães serão resgatados; os bancos cipriotas não. Para aumentar as probabilidades de um resgate, os bancos da periferia da Zona Euro vão com certeza pedir o máximo que conseguirem em empréstimos aos bancos e investidores desses países do “núcelo” do Norte da Europa. Assim, os contribuintes nacionais vão continuar na linha da frente para compensar as perdas dos banqueiros.

 

Em conclusão, é provável que a Zona Euro como um todo tenha que enfrentar um sistema bancário “zombie”, e os esforços para reestruturar os bancos de forma decisiva e justa não passam de retalhos. Pior que isso, a divisão Norte-Sul, núcleo-periferia, vai aumentar, deixando de um lado os bancos apoiados pelos contribuintes e do outro bancos que terão de se desenvencilhar sozinhos.

 

Isso vai ser um bónus para os contribuintes do Sul da Europa, mas implica que até os bancos sólidos possam vir a ter maiores custos de financiamento do que os duvidosos bancos do Norte da Europa, num futuro próximo. As empresas do sul vão enfrentar custos de crédito mais altos do que as empresas do norte, o que vai dificultar o crescimento. A farsa da união bancária é a receita para consolidar a divisão política e económica.

 

Phillippe Legrain foi consultor económico do Presidente da Comissão Europeia até Fevereiro de 2014. O seu novo livro, European Spring: Why Our Economies and Politics are in a Mess – and How to Put Them Right, foi publicado em Abril.

 

Copyright: Project Syndicate, 2014.

www.project-syndicate.org

Tradução: Bruno Simões

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