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Robert Skidelsky - Economista 26 de Junho de 2017 às 14:00

A profunda confusão dos britânicos

As eleições gerais deste ano sobrepuseram-se a esta divisão tradicional entre esquerda e direita, com o Partido Trabalhista a capitalizar o voto dos descontentes com os cortes orçamentais levados a cabo pelos Conservadores.

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"Basta", anunciou a primeira-ministra britânica, Theresa May, depois do ataque terrorista na Ponte de Londres. Agora, é claro que, quase metade dos que votaram nas eleições gerais, realizadas a 8 de Junho no Reino Unido, estão cansados de May e a maioria dos Conservadores dissipou-se nas urnas, criando um parlamento suspenso (nenhum partido tem a maioria). Se os eleitores queriam dizer "basta de imigrantes" ou "basta de austeridade", o certo é que os eleitores britânicos estão fartos de muitas coisas.

 

A eleição deixou o Reino Unido desconcertadamente dividido. Do referendo sobre a manutenção do país na União Europeia, realizado no ano passado, surgiu uma divisão entre os Leave e os Remain, com os partidários da saída com uma ligeira vantagem. As eleições gerais deste ano sobrepuseram-se a esta divisão tradicional entre esquerda e direita, com o Partido Trabalhista a capitalizar o voto dos descontentes com os cortes orçamentais levados a cabo pelos Conservadores.

 

Para ter uma ideia do terreno político resultante disto, imagine uma mesa de dois por dois, com quatro lados ocupados por: partidários da manutenção do Reino Unido na UE e de cortes no orçamento, partidários da manutenção e expansionistas económicos; partidários da saída e de cortes orçamentais e partidários da saída e expansionistas económicos. Estes quatro lados não somam metades coerentes, por isso, não é possível perceber o que é que os eleitores pensaram quando estavam a votar.

 

Mas é possível perceber o que é que os eleitores rejeitaram. Há duas baixas. A primeira é a austeridade, que mesmo os Conservadores sinalizaram que iam abandonar. Cortar os gastos públicos para equilibrar o orçamento estava assente numa teoria errada e falhou na prática. O indicador mais significativo foi a incapacidade de George Osborne, ministro das Finanças entre 2010 e 2016, de alcançar qualquer das metas orçamentais. O défice era para ter desaparecido em 2015, depois em 2017 e depois entre 2020 e 2021. Agora, nenhum governo vai comprometer-se com uma data.

 

Os objectivos tinham por base a ideia de que um programa de redução do défice "credível" criaria a confiança empresarial necessária para ultrapassar os efeitos depressivos dos cortes na actividade. Alguns dirão que os objectivos nunca foram suficientemente credíveis. A verdade é que nunca poderiam ser: o défice não desce a menos que a economia cresça, e os cortes orçamentais, reais e antecipados, prejudicam o crescimento. Agora, o consenso é que a austeridade atrasou a recuperação durante quase três anos, deprimindo os salários reais e causou enormes prejuízos nos serviços públicos fundamentais e nos governos locais, nos cuidados de saúde e na educação.

 

O que se deve esperar é que a obsessão ridícula com o equilíbrio do orçamento seja abandonada. A partir de agora, o défice deve ajustar-se ao estado da economia.

 

A segunda baixa é a imigração sem restrições por parte de cidadãos de outros membros da UE. A exigência de "controlo sobre as nossas fronteiras" dos partidários do Brexit está directamente relacionada com o fluxo descontrolado de migrantes económicos a partir da Europa de Leste. Essa exigência vai ter de ser satisfeita de alguma maneira.

 

A migração dentro da Europa era insignificante quando a UE era sobretudo constituída por países da Europa Ocidental. Isto mudou quando a UE começou a contar com os antigos países comunistas, que tinham baixos salários. A subsequente migração aliviou a escassez de mão-de-obra em países como o Reino Unido e a Alemanha e aumentou os rendimentos dos migrantes. Mas tais benefícios não se aplicam a uma migração sem restrições.

 

Estudos de George J. Borjas, da Universidade de Harvard, e de outros, sugerem que a imigração líquida reduz os salários da força de trabalho doméstica concorrente. O estudo mais famoso de Borjas mostra o impacto depressivo dos "Marielitos" – cubanos que imigraram em massa para Miami na década de 1980 – nos salários da classe trabalhadora interna.

 

Há muito que estes receios suportam a insistência dos Estados de que é um direito seu controlar a imigração. O apelo ao controlo é mais forte quando os países que recebem os imigrantes têm um excedente de mão-de-obra, como tem acontecido em grande parte da Europa Ocidental desde a crise de 2008. O apoio ao Brexit tem essencialmente uma exigência, que é restabelecer a soberania do Reino Unido sobre as suas fronteiras.

 

O cerne da questão é a legitimidade política. Até aos tempos modernos, os mercados eram sobretudo locais e fortemente protegidos contra as pessoas de fora, mesmo que fossem das cidades vizinhas. Os mercados nacionais nasceram com o advento dos estados modernos. Mas o movimento sem limitações dos bens, capital e força de trabalho dentro dos estados-membros só se tornou possível quando duas condições foram alcançadas: o crescimento da identidade nacional e o surgimento de autoridades nacionais capazes de dar segurança em caso de adversidade.

 

A União Europeia não cumpre nenhuma dessas condições. A sua população é constituída por pessoas que são, em primeiro lugar, cidadãos dos seus países. E o contrato entre os cidadãos e os estados, do qual dependem as economias nacionais, não pode ser reproduzido ao nível europeu porque não há um estado europeu, com o qual assinar um acordo. A insistência da UE na livre circulação de pessoas como condição de pertença é, na melhor das hipóteses, prematura. Vai ter de ser qualificada não apenas como parte do acordo do Brexit, mas para toda a UE.

 

Como é que vai evoluir o resultado das eleições gerais britânicas? May não vai ser durante muito tempo primeira-ministra. Osborne chamou-a de "mulher morta a deambular" (claro que não reconheceu que as suas políticas de austeridade ajudaram ao seu desaparecimento).

 

O desfecho mais sensato é uma impossibilidade política: um governo de coligação Conservadores-Trabalhistas, com (digamos) Boris Johnson como primeiro-ministro e Jeremy Corbyn como seu vice-primeiro-ministro. O governo adoptaria um programa de dois anos que consistiria em apenas duas coisas: a conclusão de um acordo para um Brexit "soft" e um grande programa de investimentos em habitação, infra-estruturas e energias limpas.

 

O racional para o programa de investimento é que quando a maré sobe levanta todos os barcos. E um outro benefício de uma economia próspera será a baixa hostilidade para com a imigração, tornando mais fácil para o Reino Unido negociar as regras para os fluxos migratórios.

 

E quem sabe: se as negociações obrigarem a UE a reformular o seu próprio compromisso com o movimento de livre circulação de trabalhadores, o Brexit pode passar a ser um tema que foque menos a questão da própria saída do Reino Unido e mais a totalidade dos termos para se ser membro europeu.

 

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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