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06 de Julho de 2015 às 20:00

Um placebo chamado QE

Já passou quase meio ano desde que o Banco Central Europeu declarou a sua intenção de comprar cerca de 1,1 biliões de euros em títulos da Zona Euro. Quando anunciou pela primeira vez o chamado "programa alargado de compra de activos" em Janeiro, o BCE sublinhou que só estava a expandir um programa já existente, ao abrigo do qual tinha estado a comprar quantidades modestas de obrigações do sector privado, para cobrir títulos dos governos. Mas essa pretensão de continuidade era apenas isso mesmo: uma pretensão.

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Na realidade, através da compra de grandes quantidades de títulos dos governos, o BCE estava a atravessar o Rubicão; afinal de contas, está explicitamente proibido de financiar governos. Em sua defesa, o BCE argumentou que o programa era a única forma de aproximar a inflação da sua meta de 2%. Além disso, assinalou que só estava a seguir o exemplo de outros grandes bancos centrais, incluindo o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão e, especialmente, a Reserva Federal dos Estados Unidos, cujo programa de flexibilização quantitativa (QE) implicou a compra de mais de 2 triliões de dólares de títulos de longo prazo, de 2008 a 2012.

 

Colocando de parte a insegurança jurídica, determinar se a decisão do BCE de implementar o QE pode ou não ser justificada depende, em última análise do seu impacto. Mas, depois de seis meses, o seu impacto continua a ser difícil de avaliar.

 

Um dos motivos é que as taxas de juro de longo prazo são afectadas não só pelas compras reais de títulos, mas também pelas expectativas dos mercados financeiros sobre o futuro da política monetária. Na verdade, apenas um dia depois de o BCE ter feito o seu anúncio - e semanas antes das compras terem começado - as taxas de juro caíram em uma fração de um ponto percentual em toda a Zona Euro.

 

Quando as compras começaram, os juros continuaram a cair durante algumas semanas, tanto que muitos estavam preocupados com o facto de não haver títulos alemães suficientes para satisfazer a quota do país (determinada de acordo com o PIB e população dos estados-membros da Zona Euro). Mas os juros subiram novamente, e já voltaram, em termos reais, aos níveis pré-QE. Neste sentido, o programa de compra de títulos do BCE tem sido um fracasso.

 

Outros indicadores, no entanto, pintam um cenário diferente. Extraordinariamente, o crescimento dos preços no mês passado foi positivo, sugerindo que a ameaça da deflação foi eliminada. Isso conduziu a um modesto aumento da inflação esperada – a medida favorita do BCE em relação à estabilidade de preços - não para o futuro imediato, mas em cinco anos, e durante cinco anos.

 

Em termos concretos, o BCE está a medir o sucesso da sua política actual de acordo com a taxa de inflação esperada em 2020-2025. Este valor, calculado a partir dos preços dos diferentes tipos de títulos, indexados e não indexados, a cinco e dez anos, baseia-se no pressuposto um tanto heróico de que todos os mercados para esses títulos funcionam de forma eficiente.

 

Isto representa uma contradição fundamental. É suposto que o QE funcione através de "efeitos de equilíbrio de portefólio", o que implica que os mercados não são totalmente eficientes: as compras de títulos de longo prazo afectam as condições financeiras, alterando os tipos e a quantidade de activos financeiros que o público detém. Como é que se pode usar os preços de mercado como um indicador de inflação num futuro distante e, simultaneamente, justificar o QE, alegando que a maioria dos investidores se limita a certas classes de cativos e, portanto, não segue os sinais de mercado de forma eficiente?

 

Outro problema com o uso da taxa de inflação esperada a cinco anos, dentro de cinco anos, para avaliar a eficácia do QE é que a taxa está correlacionada com os preços do petróleo. Na verdade, quando os preços do petróleo diminuíram no ano passado, as expectativas de inflação também caíram (medidas, contudo, de forma imperfeita). E o anúncio do QE por parte do BCE coincidiu com o início da recuperação dos preços do petróleo, pelo que se poderia esperar um aumento das expectativas de inflação.

 

Com tais coincidências e contradições provenientes de quase todos os aspectos do debate em torno do QE, parece que avaliar a eficácia da política é mais uma arte do que uma ciência. Infelizmente, isso deixa muito espaço para distorções e preconceitos.

 

Mais gritante é a tendência dos defensores do QE para atribuir qualquer declínio nas taxas de juros antes de a política ter sido anunciada às expectativas dos mercados de que ela estaria a chegar. No entanto, eles não aplicam o mesmo raciocínio para explicar o declínio das expectativas de inflação, que ocorreu durante o mesmo período. Seguiram a mesma lógica desde que as compras começaram, ignorando as recentes subidas dos juros, e louvando a pequena subida das expectativas de inflação como prova da eficácia do QE.

 

Na realidade, é claro que o QE – a expectativa ou a execução do mesmo - afectaria as taxas de juro e as expectativas de inflação que derivam delas. Assim, se o presidente do BCE, Mario Draghi, quer destacar o facto de as taxas de juro nominais estarem hoje mais baixas do que em Agosto passado, deve reconhecer também que, dadas as baixas expectativas de inflação, as taxas de juro reais mudaram pouco.

 

Mas nas discussões sobre o QE falta muito deste pensamento pragmático. Em vez disso, cada lado tem caricaturado o outro: os apoiantes enfatizam que, em lado nenhum, o QE conduziu a uma inflação galopante, enquanto os adversários salientam que, em lado nenhum, o QE, por si só, reavivou um crescimento robusto.

 

Na verdade, não tem havido nem inflação nem crescimento: os bancos centrais podem aparentemente derramar centenas de milhares de milhões de dólares, euros ou ienes no mercado com pouco efeito discernível. O QE consiste, basicamente, numa troca de dois activos de baixo rendimento – títulos de longo prazo e depósitos do banco central. Nos mercados amplos e eficientes, esta troca não significa muito.

Daniel Gros é director do Centro de Estudos Políticos Europeus

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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