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28 de Outubro de 2005 às 13:59

Um cravo para Haro

A Espanha moral e intelectual prestou homenagem a um dos seus grandes: o jornalista Eduardo Haro Tecglen, de 81 anos, falecido em 18 de Outubro, que de si próprio dizia ser el ultimo de los rojos.

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«Talvez a vida de um jornalista e de seu cérebro, sua textura mental, sejam, em si mesmas, um jornal».
Eduardo Haro Tecglen «Hijo del Siglo»

A Espanha moral e intelectual prestou homenagem a um dos seus grandes: o jornalista Eduardo Haro Tecglen, de 81 anos, falecido em 18 de Outubro, que de si próprio dizia ser el ultimo de los rojos. Este homem volumoso, de palavra fértil e austera, riso largo e claro, constituiu, durante sessenta anos, a citação da resistência antifascista e a voz sem excessos e sem fadigas que subsistia à voragem e se opunha à capitulação. O seu génio está inscrito na lendária revista «Triunfo» e, nos últimos vinte e cinco anos, em «El Pais».

No remate da década de 60, em Madrid, levado pela mão de Pablo Del Amo (prodigioso montador de filmes, companheiro da famosa tertúlia lisboeta do Ribadouro, e a quem o Portugal cinematográfico nunca prestou o tributo devido), fui a uma reunião d’amigos, onde estavam Tecglen, Carlos Saura, Juan António Bardem e Carlos Barral entre outros. Todos escutavam Tecglen com o respeito e a atenção habitualmente associados aos que nos habilitam para o conhecimento - e nos ensinam a desprezar oportunistas, traidores e delatores.

A força espiritual que emanava daquele homem, a imensa cultura, a fina ironia e a influência intelectual que exercia teriam, necessariamente, de atrair uma pauta de inimigos ferozes. A direitona, acoitada no «ABC» e em outros varandins, como «Pueblo», cobria-o de insultos. O costume. A direitona abomina os que lhe cingem a sela e cavalgam a sua carência de grandeza, chibatando-a com o pingalim da razão e da probidade. Indicou-o à polícia política, tentou impedir a sua escrita e amordaçar a sua voz. Em vão. O estro de Eduardo Haro Tecglen era mais enérgico e impoluto.

A morte deste extraordinário jornalista passou praticamente despercebida em Portugal. Duas excepções: as excelentes crónicas de Adelino Gomes [«Público»] e de Albano Matos [»Diário de Notícias»]. O testemunho de Adelino Gomes ressalta de elevação e de coragem. Escreve: «Rojo e inimigo da monarquia, Haro ali [no «El Pais»] expôs, década após década, pontos de vista tremendos. De um politicamente tão incorrecto que nenhum Expresso, nenhum DN, nenhum PÚBLICO se atreveriam, receio, a mantê-lo tanto tempo nas suas páginas. Ao contrário, Cebrián, primeiro director e um dos patrões da Prisa, veio a público fazer-lhe incondicional elogio fúnebre. E lembrar que era pela sua crónica que muitos iniciavam a leitura diária do jornal».

De certa forma, Adelino Gomes escreve sobre a nossa impossibilidade de alterar as coisas, da negligência do carácter actual, e da tristeza sem alternativa que nos rodeia. O título do seu belo texto é pungente, por significativo: «España es diferente». Ele fala, destemidamente, do que sabe; e eu sei que ele sabe que também sei. E ambos sabemos dos nomes omitidos, dos anulados pelo silêncio, devido a manobras dos emergentes de várias abjurações, e, por isso mesmo, escalados para centros de decisão da Imprensa portuguesa. Neste assunto, Roma tem pago a traidores.

A crónica de Albano Matos é, por igual, comovedora. Elogiando a integridade de Haro Tecglen, salienta os verdetes que essas virtudes, hoje raras, suscitavam, a tal ponto que «o ‘ABC’ chegou a dedicar uma rubrica de insultos (Harobasura), intercalados por tentativas de conversão? póstuma». E mais adiante: «Odiado pela direita tardo e pós-franquista, Haro Tecglen chocou grande parte da sua esquerda quando, ao evocar, a célebre palavra de ordem da Pasionaria, comentou: ‘Não, é mil vezes preferível viver muito tempo de joelhos do que morrer rapidamente de pé’’’.

Folheio «Hijo del Siglo», que há anos me enviou o meu velho companheiro inconformado. E ali está: «A vida faz-se todos os dias de uma anedota pessoal, de uma barbárie política, de uma injustiça que nasce do ventre violado da Justiça nas frontarias dos seus templos, de um amor ou de um abandono, da frase de um miúdo ou do passo de uma mulher, ou de uma longínqua matança».

Esteve onde devia estar, quando era necessário que estivesse. Assistiu à nossa festa de Abril e reverenciou a crónica desordenada dos dias de júbilo. Até à meta final zurziu, sem complacência, os vendilhões, os renegados, os «arrependidos». Viveu na fidelidade a princípios. E exemplificou que merece a pena pelejar contra todas as misérias - sobretudo contra a miséria moral.

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