Opinião
Um clima de desorientação
Uma sucessão de impasses militares e diplomáticos está a provocar uma catadupa de iniciativas desconexas que revelam profunda desorientação e descoordenação face às crises que se agravam do Levante ao subcontinente indiano.
A constatação de que o Irão não será sujeito a sanções económicas e financeiras gravosas, selada pelas declarações de Jacques Chirac acerca do diálogo imperativo com Teerão e agravada pela constatação da inviabilidade de um ataque militar norte-americano, evidenciou no imediato os riscos de proliferação nuclear.
Gamal Mubarak, o filho e putativo herdeiro do presidente egípcio, elaborou, assim, acerca da necessidade do país enveredar por um programa de produção de energia nuclear para fins exclusivamente civis. O ministro da energia concretizou, anunciado de seguida que o Egipto investiria 1,5 mil milhões de dólares na construção de uma central de 1000 MW a inaugurar em 2015.
A Turquia que, tal como o Egipto, é signatária do Tratado de Não Proliferação mantém, por sua vez, o projecto de construção de três centrais até 2015, enquanto a Arábia Saudita guarda silêncio sobre eventuais opções nesse sentido. Nos últimos meses os estados do Golfo iniciaram, no entanto, discussões preliminares sobre a viabilidade de programas nucleares civis.
Os riscos destes eventuais programas nucleares acabarem por incorporar componente militares são elevadíssimos face à prossecução dos projectos iranianos que ganhou esta semana novo alento com a confirmação por parte de Moscovo de que cumprirá as suas obrigações contratuais de forma à central de Busher entrar em funcionamento em Novembro de 2007.
O interesse em obter garantias mútuas informais de não-agressão face às ameaças de Teerão e dos seus aliados explica, por seu lado, as fugas de informação sobre os primeiros contactos de alto nível entre representantes israelitas e sauditas.
O entendimento entre Telavive e Riade esbarra, contudo, na impossibilidade presente de Israel oferecer concessões na questão palestiniana. O descalabro libanês e a recusa terminante do Hizballah em desarmar as suas milícias retirou margem de manobra ao governo de Ehud Olmert que abandonou os planos para uma retirada unilateral da Cisjordânia. As sondagens indicam uma acentuada viragem à direita do eleitorado israelita favorecendo o Likud de Benjamin Netanyahu em detrimento do Kadima de Olmert e dos trabalhistas de Amir Peretz.
A incapacidade das facções da OLP que ainda aceitam a autoridade do presidente Mahmoud Abbas em imporem uma partilha de poderes ao Hamas em Gaza e o reconhecimento indirecto de Israel condenam, por seu turno, os palestinianos ao isolamento diplomático e à ruína financeira.
Nesta conjuntura são vãs as esperanças de qualquer compromisso nos termos da proposta avançada pelos sauditas em 2002 que implicava o reconhecimento de Israel pelos estados árabes em troca da retirada dos territórios palestiniano e sírio ocupados em 1967, do estatuto de Jerusalém Oriental como capital de um estado independente e de uma vaga "solução justa" para os mais de quatro milhões de refugiados palestinianos.
Uma guerra perdida
À apreensão generalizada dos estados árabes sunitas, da Turquia e da Arménia de que Teerão conseguirá levar avante o seu programa e dotar-se de armas nucleares junta-se a constatação de que as possibilidades de pacificação do Iraque são praticamente nulas.
Todos os partidos curdos e xiitas continuam a aumentar as exigências de autonomia à custa do governo central e a decisão de adiar por dois anos a criação legal de regiões tem sobretudo a ver com o cálculo por parte dos xiitas de que os Estados Unidos ver-se-ão obrigados até lá a retirar do Iraque. Só os curdos pela voz do presidente Talabani expressam interesse público em albergar tropas norte-americanas.
Uma sondagem encomendada pelo Pentágono e revelada esta semana pela BBC expressa em toda a sua extensão a impossibilidade de conter a insurreição e o terrorismo dos grupos sunitas e a escalada de ataques e retaliações das milícias xiitas.
Encurralada e politicamente impotente a minoria de cinco milhões de sunitas aparenta agora apoiar esmagadoramente a insurreição armada contra as tropas da coligação norte-americana e britânica. Se em 2003 apenas 14 por cento dos sunitas inquiridos manifestavam apoio aos ataques presentemente esse número subiu para 75 por cento, segundo o estudo encomendado pelo Departamento de Defesa de Washington.
Fracassado o projecto de democratização no Iraque aumentam as preocupações pelo efeito mobilizador que o conflito tem causado entre radicais sunitas e xiitas seduzidos pela propaganda islamita. A estimativa conjunta das 16 agências de informação dos Estados Unidos de que a guerra no Iraque tem aumentado a base de recrutamento de grupos terroristas no Médio Oriente, a nível internacional e junto das comunidades de imigrantes muçulmanos e seus descendentes segue-se a idêntica análise feita no início do ano pelos serviços secretos britânicos.
Um pacto com o diabo
O panorama fica mais negro pelo fracasso do contingente multinacional em assegurar a segurança nas regiões rurais do Afeganistão que retornou ao padrão tradicional de sustento de milícias tribais pela produção e tráfico de ópio e heroína.
O Paquistão, por seu turno, acaba de agravar a periclitante situação do governo de Hamid Karzai, que se encontra confinado a Cabul, ao mesmo tempo que vê deteriorem-se as relações com Nova Delhi que alega cumplicidade de Islamabade em grande número de ataques terroristas na Índia.
O acordo selado entre os líderes tribais do Waziristão e Islamabade para retirada das tropas governamentais da província é uma cedência dos militares na esperança de evitar que a crescente radicalização dos pashtun provocada pelo reforço do movimento taliban acabe por fragilizar ainda mais o regime de Pervez Musharraf.
O cálculo de que a liberdade de movimentos dos taliban no Waziristão confinará as suas investidas ao território do Afeganistão poderá, no entanto, revelar-se errado em detrimento quer do governo de Cabul, quer de Islamabade se prosseguir a radicalização dos 40 milhões de pashtun que representam mais de 15 por cento da população do Paquistão e cerca de 40 por cento dos alegados súbditos do estado afegão.
A região fronteiriça é assim refúgio natural para dirigentes da Al Qaeda que continua muito activa ainda que de forma mais descentralizada. Desde Setembro de 2001 os fiéis de Bin Laden dirigiram, financiaram ou participaram directamente em 30 ataques em 12 países que causaram 2060 feridos e 440 mortos, de acordo com um estudo da Rand Corporation para a Agência de Segurança Interna dos Estados Unidos.
A estes ataques da responsabilidade da Al Qaeda juntam-se os atentados perpetrados no Iraque e as acções de grupos radicais islamitas independentes que se tornaram mais letais nos últimos cinco anos do que em qualquer período precedente.
No encadeamento de todas estas crises surge um elemento comum. A administração Bush mostra-se incapaz de articular iniciativas diplomáticas coerentes em pelo menos quatro questões fulcrais: o programa nuclear iraniano, a guerra do Iraque, o conflito israelo-palestiniano-árabe, além do Afeganistão. Os Estados Unidos em vez de promoverem ou coordenarem iniciativas diplomáticas estão assim cada vez mais sujeitos aos riscos das acções que os seus aliados e parceiros decidem assumir unilateralmente.