Opinião
Todos somos culpados
As críticas que, um pouco à Direita e à Esquerda, têm sido feitas a José Sócrates, comentando os percalços, tropeços e barafundas do seu governo, correspondem ao sentimento de frustração que, novamente, se instalou na sociedade portuguesa.
Manifesta-se algo de dúbio nas decisões, e muito de improviso naquilo que o Executivo faz. As decisões são abaladas pela controvérsia, o que seria salutar, acaso não irrompessem no interior do próprio governo. E o que se faz exprime um resíduo do que, na realidade, deveria ser feito. Depois, demonstram-se os recuos tácticos, todas as vezes que o Executivo pensa em aplicar a estratégia prometida.
Compreendo os temores dos portugueses, perante as perspectivas que se lhes propõem. O não cumprimento desta nova legislatura, probabilidade por alguns aventada, daria origem a quê? A outro governo PS? A outro governo PSD? Um é pior do que o outro, e o outro é pior do que aquele. Somos os tristes destinatários de um facto político remetido por um bando de gente sinistra. Mas a verdade, também, é que pouco fazemos para inverter esta fúnebre tendência para o abismo.
A dissolução dos géneros políticos e as confusões doutrinárias a que se prestaram os partidos de poder, em quase toda a Europa, determinaram o aparecimento de epifenómenos como Berlusconi. Este resulta, sobretudo, da falência ideológica dos partidos de Esquerda. A torrente neoliberal foi devastadora. E o que resta dos partidos comunistas não dispõe de força bastante para, isoladamente, conseguir enfrentar vitoriosamente o inimigo.
Surpreende-me a circunstância de haver gente que acha tudo isto muito bem. Os exorcismos do nosso viver actual chegam ao ponto de permitir o branqueamento do fascismo, sem que se registe uma onda de indignação. Há quem recorra ao «paradoxo histórico» para justificar o injustificável. Assinala-se, isso sim, uma capitulação cívica, moral e política, quase sem precedentes na agitada história de Portugal.
Como já não temos muito tempo, seria bom que desejássemos tudo imediatamente. Todavia, vivemos num estado de confusão tão grande, desprovidos de método, de lucidez e de motivação que seria mais correcto falarmos de uma cultura do perecível, do provisório segmentado, do que de um impulso renovador.
Numerosos correspondentes costumam interpelar-me: que fazer?, qual o remédio?, ao mesmo tempo que me dão com o sarrafo, pela perseverança das minhas críticas. Lamento confessar os escassos recursos intelectuais de que disponho e a modéstia do meu entendimento - mas não sei responder, exactamente pelo facto de que nem eu ou nenhum de nós perceber claramente os limites da história e as armadilhas que ela nos apresta. Porém, a educação cívica, a cultura, o conhecimento, a paixão e a vontade podem constituir um correctivo à nossa costumada abulia e à tradicional mentalidade conservadora com que, sobretudo, a Igreja católica nos cunhou.
As distinções de categoria, tema obsidiante em homens da estatura de Verney, Anastácio da Cunha, Antero, Oliveira Martins, Raul Proença e de Eduardo Lourenço, foram substituídas pela eficácia prática, palavrão que encobre as piores patifarias políticas. Assim, o nosso desencantamento recolhe, no bojo, formas cínicas de fuga às colectivas responsabilidades. A instilação dessa «inocência» escapa aos cânones da razão comum. E a «tristeza portuguesa» é o torpe modo de rejeitarmos qualquer culpa naquilo que nos acontece!
A cultura instiga-nos à curiosidade. A política conduz-nos às incertezas da consciência: votámos bem?, votámos mal?, votámos, afinal, para quê? Os partidos de poder são semelhantes nos objectivos, talvez menos semelhantes nas relações humanas. Que fazer para evitar, contornar ou combater as marcas do tempo?
Sei ser difícil, com instrumentos de imbecilização como são as televisões; com as ambiguidades políticas, as cumplicidades partidárias e a mediocridade impante ajudar a resolver os problemas e as contradições de uma sociedade que deixou de ser comunidade de afectos. O achatamento dos valores é um acontecimento inexorável. Contudo, há um factor que subiste: o da consciência. Querem impor-nos uma cultura fragmentada. Muitos de nós resistimos a isso.
FRASE: «O que injuria e insulta sob a capa do anonimato, não passa de um estafado canalha» - Montesquieu, «L’Esprit des Lois».