Opinião
Tinos e desatinos de Verão
O facto de o belíssimo edifício do consulado português de Sevilha correr o risco de ser entregue, por este triste Governo, ao Estado espanhol, tem suscitado alguns protestos, não tantos quanto seria desejável. Os comentadores do óbvio, os estipendiados e
Pelo menos, não tenho dado conta das apoquentações dos “agentes culturais” encartados.
Ao que parece, a Região de Turismo do Algarve demonstrou interesse em transformar o edifício num posto de Turismo e, simultaneamente, na sede da Câmara de Comércio e numa loja de produtos regionais. Nada mais certo.
Os espaços publicitários que pagamos na Imprensa do país vizinho não estimulam ninguém, além de ser pouco apelativos. Mais importante do que a esmaecida criatividade desses anúncios são os artigos, as reportagens e as crónicas que o diário “El Pais” regularmente insere nas suas páginas.
Não é novidade para ninguém, mas convém não esquecer: a estratégia turística governamental revela-se escassa, coxa, oca e dispendiosa. A bem dizer incide, somente, sobre o Algarve, com tímidas incursões a outras zonas do País, de beleza incomparavelmente superior, e com admiráveis possibilidades de atrair visitantes nacionais e estrangeiros. E, não o esqueçamos, há aquela inesquecível ideia do ministro Pinho em criar um neologismo burro - Allgarve - a fim de querer dizer não se sabe quem quê, porque, rigorosamente, Allgarve não significa, rigorosamente, coisa alguma.
As praias do Sul atraem turistas apenas porque existem. Todavia, como numerosos técnicos de turismo no-lo ensinam, há mais Portugal e, acaso, melhor Portugal para aliciar clientela. Ao que julgo saber, o projecto da Região de Turismo do Algarve deseja alargar as suas propostas, num espírito de abertura e de entendimento profissional que só merece apoio e aplausos.
A desorganização do território deu origem à vergonhosa situação urbanística do Algarve. A situação era previsível. No final da década de 60, um grande jornalista português já desaparecido, Mário Ventura Henriques, criou, no “Diário Popular”, uma página semanal, “Turismo e Antiturismo”, na qual denunciava as anomalias, os mamarrachos e as tropelias praticadas por gente inescrupulosa na província algarvia.
São textos notáveis. E, ainda hoje, podem ser lidos com encanto e proveito. A Censura, a princípio por distracção, permitiu que fossem publicadas prosas “assanhadas” (como diria, hoje, o ameno Eduardo Prado Coelho), que despertavam a ira dos empreiteiros e o deleite dos leitores. A página do Mário Ventura era uma inovação iconoclástica. E, simultaneamente, um acto de coragem por ser um compromisso pedagógico, moral e deontológico.
Sei muito bem que as coisas, na Imprensa, se modificaram. E que a “distanciação” roubou ao jornalismo o que o jornalismo contém de mais fundamental: o exercício moral da profissão que, inexoravelmente, conduz à defesa de causas, à cidadania, e à participação do leitor como objecto de intervenção.
A partir de certa altura, a Censura retalhava, semanalmente, quase a totalidade do texto. Mário Ventura, aliás de acordo com Francisco Pinto Balsemão, escrevia, como reserva substituta, duas e três páginas a mais. Uma das críticas mais “assanhadas” (repito o termo, para chatear) constituiu uma reportagem que o jornalista redigiu sobre as Torres da Torralta. Ventura foi inclemente. E, apesar de os edifícios serem um projecto de um importante arquitecto, então muito na moda, o proseio não era nada ameno.
A reacção não se fez esperar. E, ao contrário do que se possa presumir, foi extremamente positiva – sobretudo pela parte do administrador principal da Torralta, Agostinho da Silva, homem de grande carácter e forte dignidade. O empresário agradeceu a Ventura e ao “Diário Popular” a oportunidade que lhe tinham dado de perceber o que estava errado no projecto. E acentuava: “Contratei um dos melhores entre os melhores arquitectos”.
Recordo estes episódios para sublinhar a importância da decisão da região de Turismo do Algarve, um pouco ao arrepio da negligência governamental. O que a move é, de certa forma, a implicação do meu próprio trabalho habitual: a correcção do que me parece inexacto, injusto e desacertado. Não sou detentor do busílis que resolve todos os problemas. Nenhum “comentador” o tem. Talvez me diferencie um pouco de todos os outros pelo facto de, ante a indignidade e o desmazelo, a incompetência e o arreganho da soberba, pegar logo no sarrafo e não me servir do prazenteiro aparo de letra francesa. Nada quero do Poder. Tenho numerosos amigos em todos os sectores da vida portuguesa e em todos os partidos. A nenhum pertenço. Procedi como procedi, fiz o que tinha a fazer, actuei como devia actuar em várias épocas da sociedade portuguesa. De nada me arrependo. Apenas desejei modificar o mundo. Ainda o desejo, valha-me o deus das doces esperanças!
Elogiei, publicamente, os cinco administradores do Hospital Pedro Hispano, de Matosinhos, porque resolveram abdicar do direito legal que lhes assistia, de adquirir carros do Estado, e destinar essa importância (170 mil euros) para a compra de equipamentos urgentes da unidade de neurocirurgia. Gosto de gente deste jaez e estilo. Admito que, num tempo como este, decisões do género arriscam-se a ser tomadas como ingenuidade ou demagogia. Pouco importa. Afonso Domingues foi apodado de tolo quando se colocou sob a abóbada que construía. “A abóbada não caiu, a abóbada não cairá!” Há, nas pessoas de bem, algo que determina os riscos que correm. Gosto de gente deste jaez e estilo. Detesto os dúplices, os de meia-cara, os coniventes, os cúmplices – que se não “assanham” com coisa alguma.
Alimento grande admiração por Miguel Torga. Era um “assanhado” e escrevia num português ignorado pela esmagadora maioria dos seus detractores. Foi um autor profuso, um escritor inconveniente, um prosador absolutamente necessário. Tinha uma pessoalíssima visão do mundo, o que o torna singular e, objectivamente, alvo de desagrados. E foi autor de admiráveis poemas, além dos intensos volumes de “A Criação do Mundo”, um retrato pungente da nossa miséria e do mundo rural ainda persistentes. Ele pertence a essa cordilheira da cultura portuguesa que se constrói com altos cumes e com ameadas mais baixas.
Pertence, afinal, ao que dispomos de mais asseado, íntegro e decente. Goste-se ou não.