Opinião
Tempo de oxímoros
A linguagem sempre se molda ao zeitgeist, essa bonita palavra alemã que entre nós se traduz por espírito do tempo, conjunto das preocupações e expectativas que definem uma época.
A nossa, era em que reina a incerteza, as palavras tendem a exibir um misto de drama e confusão. Fala-se muito de terrorismo, guerra, doença, fim dos fins, num interminável desenrolar de males de que se alimenta tanto o imaginário das populações quanto a própria economia mundial. Informação e cultura, actividade política, espectáculo, grupos de interesse, religiões, especialistas de toda a espécie prosperam à sombra de uma verdadeira indústria do medo. E os militares, mais do que todos e grandes beneficiários do negócio dos horrores, consomem enormes recursos e prometem ainda maiores devastações.
Mas hoje, a essas palavras bem conhecidas da humanidade, juntam-se outras muito estranhas e algumas vezes mesmo incompreensíveis. Os novos termos das nascentes e sempre urgentes tecnologias, inundam as nossas vidas num jargão feito de adaptações, nem sempre elegantes, da língua inglesa e de muito vocábulo inventado à pressa. A frenética da inovação é sedenta de novas palavras. Assim, sem sabermos o que é um fax, um auricular, um sistema operativo, um PC, um reboot ou uma folha excel, só para designar coisas muito triviais, ficamos impossibilitados de participar em muitas conversas, mas acima de tudo de exercer decentemente uma qualquer profissão. Que o diga o Procurador Geral da República, homem de outro tempo e que não sabendo o que é uma folha excel ainda hoje não foi capaz de apresentar uma explicação satisfatória para um tal envelope 9, aliás designação tão elucidativa daquilo que afirmo. É como se a realidade se fosse desenrolando num interminável manto de coisas e eventos aos quais é preciso dar nome, depressa e sem olhar a estética ou rigor. Que uma pessoa que assina um serviço na Internet se chame um «cadastrado» eis o que não pode deixar de levantar a maior perplexidade.
Nada é contudo mais esclarecedor sobre o referido zeitgeist do que a extraordinária proliferação de oxímoros, ou seja, o uso de termos contraditórios e que mutuamente se anulam. Uma breve passagem pelos jornais basta para descobrir uma quantidade impressionante deles. Na política temos os nacionalistas de esquerda, a direita radical, os neo-conservadores, ou a chamada ciência política, iludindo que a política nunca é uma ciência e sempre que o tentou ser deixou um longo rasto de cadáveres. Opinião pública, guerra santa, ataque defensivo, força de paz, revolução pacífica, história contemporânea inundam textos e discursos sem se darem conta da sua impossibilidade lógica. E depois temos as meias verdades, a ética flexível, os acordos de comércio livre, as leis de desregulamentação, o rendimento mínimo, a nova tradição, os reality shows ou a estabilidade económica, como se a economia não fosse o jogo de todas as instabilidades. E que dizer da «tortura aceitável» que hoje circula por documentos e práticas da mais poderosa nação do globo? A lista é vasta e não para de crescer todos os dias.
Mas os oxímoros não se encontram só nos textos e designações. Eles invadiram as ideias e os comportamentos. Vemos, por exemplo, a esquerda tornar-se conservadora, confundindo a resistência à globalização com a defesa de tudo o que há de mais retrógrado nas identidades locais. Ou abjurar a tecnologia e a inovação, não percebendo que existe uma diferença importante entre o avanço do conhecimento e o uso que se possa fazer dele. Vemos a direita proferir discursos cada vez mais radicais, usando e abusando da fractura social e da instabilidade como forma de conquista de um poder que, afinal, diz pretender ver assente na ordem e na estabilidade. Mas vemos também uma cultura que aspira à banalização, perdendo-se como consciência critica da sociedade e como vocação transformadora. Ou uma iniciativa privada que não se consegue imaginar para além do curto prazo e do lucro imediato, sem qualquer ambição social ou papel civilizacional. Basta pensar como as empresas se tornaram elas mesmas em meras mercadorias que se compram e vendem como gadgets numa feira.
O oxímoro permite também aliviar as consciências. Não ter ética pode ser uma coisa boa. Fazer de idiota pode ser uma opção inteligente, por exemplo, para quem trabalha na televisão. Um vigarista pode ter imenso sucesso. Uma ignorante pode tornar-se numa escritora de culto.
Assim vai o mundo.