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Socialistas: os grandes gestores do capitalismo

Numa significativa entrevista à revista "Focus", Ignacio Ramonet, director de "Le Monde Diplomatique", afirma que "a globalização não destruiu a política. Ela só destrói a política na medida em que aceitamos a sua destruição". A ausência de política no di

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Abandonando-se à administração meramente económica dos países onde é poder, a Esquerda substituiu a questão social por uma espécie de ortodoxia estranha ao destino de todos os outros. Os comunistas não reavaliaram a visão do mundo após a queda do Muro. Nada do que foi, é; e o que foi não incita a grandes entusiasmos, mesmo tendo em conta os aspectos positivos da experiência. Os socialistas há muito que deixaram de ser fieis à "verdade" que cimentava parte da sua força atractiva. Em Portugal, o exercício de poder pelo PS é uma hecatombe, a exigir a nossa total abjecção.

Ramonet acentua, na entrevista a Nuno Ramos de Almeida, que "a Esquerda deixou de ter ideias há quinze anos". Creio que há mais tempo. Mesmo muito antes da implosão da União Soviética, habitualmente tomada como baliza de interpretação histórica. Perante o mundo imperial, nitidamente expresso depois do Muro, a Esquerda não conseguiu distinguir a natureza do que "ficava para trás" e o que o futuro indiciava. Criou-se uma rede inextricável de interesses e de grandes construções institucionais que colocou imediatamente em causa a própria concentração do poder.

No final dos anos de 80 do século passado, numa entrevista que lhe fiz, para o semanário "O Ponto", de que fui fundador, Manuel Alegre não escondia o seu desânimo perante a social-democracia que, no seu entender, "mais não tem sido do que a grande gestora do capitalismo". Alegre, como outros, procedentes do antifascismo, acreditava (creio que ainda acredita) ser possível uma alternativa política que ultrapassasse as continuadas abdicações dos assim chamados partidos socialistas. A verdade é que o próprio Mário Soares pôs o socialismo na gaveta (segundo a metáfora por ele próprio utilizada), aliou-se ao CDS e é o animador do Bloco Central.

Estas decisões políticas correspondiam à luta mais geral contra a "ameaça comunista", numa multiplicação de guerra sem fronteiras que encaminhava os socialistas europeus para um abismo sem retorno. É uma história penosa de capitulações, servidões e traições, em nome de uma falsa estabilidade. Os receios, por vezes infundados, e os medos históricos, frequentemente alimentados por uma "comunicação social" pouco série e atrozmente ignorante, conduzem os povos à descaracterização e, até, ao mais abjecto conformismo, permitiram a consolidação de uma classe dirigente profundamente inculta, grosseira e reaccionária.

A ofensiva antisocial, conduzida pelo Executivo Sócrates, em nome do "socialismo moderno", não é uma combinação única de elementos estandardizados. Condiz com as linhas gerais de uma ordenança marcada pela dramática afirmação de Manuel Alegre. Os socialistas não o querem ser. Sobretudo, os socialistas portugueses. Foi penoso assistir, pelas televisões, à mascarada dos aplausos a António Costa, numa organização do "aparelho" a lembrar as manifestações "espontâneas" da União Nacional. Como pungente se tornou ver, na sala do Altis, aqueles pobres socialistas, felicíssimos e dominados pelo império dos signos, sem compreender que festejavam um daqueles que os havia tramado.

 A ofensiva da globalização contou, como seus áulicos fundamentais, os vários partidos socialistas europeus. O imbróglio atingiu o cerne moral. Ideologicamente, Sarkozy reduziu ao nível de um verme o carácter de vários e "destacados" dirigentes do PS francês ao atirar-lhes um prato de lentilhas. Numa entrevista repugnante a "Libération", o antigo ministro da Cultura, Jack Lang, tentou explicar o inexplicável e sustentar os actos de traição com a necessidade de servis a República. Por outro lado, Jean Daniel, em "Avec Camus", ergue a trémula flâmula da ética, procurando recuperar o exemplo do enorme escritor de "L’Étranger", perante o desmoronar de princípios, de valores e de paradigmas.

Os religiosos sofrem em silêncio. É seu dever. Porém, os não-religiosos porque se calam? O número de pessoas disponíveis para aceitar o que se lhe oferece, avoluma-se. Delatores emergem como cogumelos. A sociedade portuguesa vive uma época medonha. Há tempos, um advogado muito expedito na fala e de emocionante falta de substância, defendia, em prosa trôpega, num diário da manhã, que a denúncia da corrupção auxiliava a penalização dos corruptores. Esta equação simplista é o espelho de um tempo maculado pela indignidade. Além do que acentua o carácter cada vez mais difuso do que se considera a identidade nacional.

O cerco à liberdade de expressão não é uma fantasia de jornalistas desguarnecidos. Associa-se à ofensiva antisocial (não tenhamos medo das palavras) deste Governo. Noutros países a doutrina foi experimentada. Não resultou totalmente. Mas criou mazelas no corpo da democracia. A globalização exige dependência, sujeição e obediência. Mas a própria globalização está em crise. Os fabulosos lucros obtidos pelas multinacionais e pelos modernamente chamados "bancos federados" determinaram que se voltasse a redefinir os campos, e se exigisse a reabertura do debate de princípios, de que precisa, afinal, para a sua própria sobrevivência.

Estes problemas estão a suscitar a atenção de muitos comentadores políticos e filósofos sociais. Lá fora, bem entendido. Por cá, todos bem.

APOSTILA - Miguel Torga é um dos maiores escritores portugueses contemporâneos. Bastaria os volumes de "A Criação do Mundo" para o testificar. Mas Torga é, também, um grande poeta. Desafiou quando era perigoso desafiar: não só em política, igualmente em literatura. Foi contra a corrente, criou inimigos coléricos e amigos e admiradores devotados. Como convém àqueles que recusam ser campeões de todas as convivências. Torga foi o que foi porque, livremente, assim o quis ser. Gosto muito do que ele representa. E aqui o consigno. A Dom Quixote lançou, agora, dois tomos contendo a poesia do grande transmontano. Ocasião para descobrirmos ou relermos um dos que nunca abdicou, em circunstância nenhuma.

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