Opinião
RGPD: o direito ao apagamento de dados pessoais depois da insolvência
Extintas as suas dívidas, o devedor, como titular de dados pessoais, tem o direito de obter dos respetivos credores - responsáveis pelo tratamento o apagamento dos seus dados pessoais, sem demora injustificada.
O n.º 45 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), salienta que este compatibiliza o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, sejam elas avultadas ou não, e assim permitir-lhes a sua reabilitação económica. Trata-se de consagrar o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos e em alguns países europeus.
O princípio do fresh start consubstancia-se, pois, no regime da "exoneração do passivo restante", caracterizado pela possibilidade de ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, em conformidade com o artigo 235.º do CIRE.
O objetivo deste regime é o de impedir que o devedor fique preso a essas obrigações pecuniárias, extinguindo definitivamente as dívidas ainda pendentes de pagamento e permitindo a sua libertação para a reintegração plena na vida económica.
Assim como a reabilitação é possível em outras áreas do Direito – maxime na área penal – pretende garantir-se a reintegração social completa do devedor.
Durante os cinco anos, contados a partir da data do Despacho Inicial de admissão do pedido da exoneração do passivo restante, previsto no n.º 1 do artigo 239.º do CIRE, designado período de cessão, impõe-se uma ponderação entre os interesses do devedor e os dos seus credores, sendo exigida àquele um comportamento globalmente reto, pautado pela licitude, honestidade, transparência, boa-fé e hábitos de consumo moderados e adequados à situação de insolvência, correspondente a uma oportunidade que lhe é concedida de se submeter a um período probatório. Para aferir da sua boa conduta, reveladora da sua idoneidade.
De harmonia com o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE, o devedor assume a obrigação de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência) que afetará os montantes recebidos ao pagamento aos credores e assume, outrossim, uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, nomeadamente não ocultar quaisquer rendimentos, informando o Tribunal e o fiduciário destes, exercer uma atividade remunerada, proibindo-lhe o seu abandono injustificado, informar o Tribunal e o fiduciário, no prazo de dez dias, de qualquer mudança de domicílio ou emprego onde exerce a sua atividade e não fazer quaisquer pagamentos aos credores a não ser através do fiduciário, não criar qualquer vantagem especial para algum dos credores (n.º 4 do artigo 239.º do mesmo Código).
A decisão judicial final da exoneração importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados no processo de insolvência, de acordo com o n.º 1 do artigo 245.º do CIRE.
Porém, não são abrangidos pela exoneração: os créditos alimentares, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor reclamados nessa qualidade, os créditos por multas, coimas, e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações e os créditos tributários (n.º 2 do mesmo artigo).
Tornando-se o despacho de exoneração do passivo restante irrevogável, decorrido um ano após o respetivo trânsito em julgado, as dívidas abrangidas por este regime são definitivamente extintas, ao abrigo do n.º 2 do artigo 246.º do CIRE.
Por isso, o tratamento dos dados pessoais do devedor, efetuado no âmbito do processo de insolvência e de exoneração do passivo, mostra-se desnecessário para o cumprimento de uma obrigação legal, para o exercício de funções de interesse público ou para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial (cfr. alíneas a), b) e e), todas do n.º 3 do artigo 17.º do RGPD).
Extintas as suas dívidas, o devedor, como titular de dados pessoais, tem o direito de obter dos respetivos credores - responsáveis pelo tratamento o apagamento dos seus dados pessoais, sem demora injustificada.
Sobre os responsáveis pelo tratamento, impende a obrigação de apagar os dados pessoais, sem demora injustificada, o mais tardar no prazo de um mês, a contar da data da formulação do pedido (n.º 3 do artigo 12.º do RGPD), posto que estes deixaram de ser necessários para a finalidade que motivou a sua recolha ou tratamento, de acordo com o princípio da limitação das finalidades e com o princípio da limitação da conservação (alínea a) do n.º 1 do artigo 17.º e alíneas b) e e), ambas do n.º 1 do artigo 5.º, ambos do RGPD).
Assim, as instituições financeiras, seguradoras, prestadoras de serviços de telecomunicações, fornecedoras de serviços de eletricidade, gás e água e outros credores, que tenham publicitado os dados pessoais dos devedores exonerados do respetivo passivo, para além de terem que apagar os dados pessoais a requerimento dos titulares, decorrido um ano após o trânsito em julgado do respetivo despacho exonerativo, terão que adotar as medidas que forem razoáveis, incluindo de caráter técnico, para informar os responsáveis pelo tratamento efetivo dos dados pessoais, a quem os divulgaram, de que o seu titular lhes solicitou o apagamento das ligações para esses dados pessoais, bem como das cópias ou reproduções dos mesmos, de acordo com o n.º 2 do artigo 17.º do RGPD.
Estamos perante o direito a ser esquecido em linha, que se concretiza na adoção de medidas técnicas, por parte do responsável pelo tratamento, para informar outros sítios web, designadamente o Banco de Portugal ou outras listas públicas de devedores, de que determinado titular requereu o apagamento dos seus dados pessoais.
Extintos definitivamente os créditos e encetada a reabilitação económica do devedor, os seus dados pessoais não mais são necessários para a finalidade para que foram recolhidos e tratados, pelo que poderão ser objeto de apagamento.
Como reconhece a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o direito ao apagamento prevalece, em princípio, não só sobre o interesse económico do operador do motor de busca mas também sobre o interesse do público em aceder à informação numa pesquisa sobre o nome dessa pessoa (Processo C- 131/12, Acórdão Google Spain SL and Google Inc. v. Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja González, de 13 de maio de 2014, que deve ser acompanhado pelo Processo C-507/17 - Google LLC v. CNIL - Commission nationale de l’informatique et des libertés - a autoridade francesa de proteção de dados).
A publicação e o registo do despacho inicial e do despacho de exoneração deverão ser conservados durante dez anos, (alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º e artigo 247.º, ambos do CIRE), contados a partir da data do seu início.
Contudo, em homenagem à reabilitação económica do devedor, tal registo não poderá ser de acesso público, sob pena de subversão da razão de ser do princípio do fresh start, já que o histórico dos registos dos seus dados inibe de forma significativa a retoma da sua vida económico-financeira.
Haverá que limitar rigorosamente os acessos ao dados do devedor, que o já não é.