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Registo Criminal

Uma rotina burocrática recordou-me a existência de uma coisa que dá pelo nome de Registo Criminal. Natural como o enfarte do miocárdio, este cadastro, tal como tantos outros, reflete a tendência da nossa civilização para o registo e arquivamento de tudo o que vai sucedendo. Historiadores e burocratas ficam satisfeitos, a generalidade das pessoas nem por isso.

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O Registo Criminal tem por objeto a recolha, tratamento e conservação das mais variadas ilegalidades cometidas pelos cidadãos. Ou seja, trata-se de um verdadeiro "big brother" do sistema policial. Nalguns casos até parece útil. Ao permitir saber se uma pessoa foi condenada anteriormente e por que motivo pode ser um elemento de ponderação nos casos de julgamento e reincidência. Sucede que vivemos numa sociedade em que depressa se passa do uso para o abuso. Hoje, o certificado do Registo Criminal é exigido praticamente para tudo. Para conseguir um emprego, para celebrar um contrato, para inscrição nos mais diversos organismos públicos e privados. O Governo anterior aboliu a necessidade de apresentação deste certificado em 95 casos, sim, 95, mas sobram ainda centenas de situações no domínio público e todas as que se quiserem no campo dos privados. Em boa verdade, por exemplo, como artista posso exigir a uma pessoa que deseje comprar-me um quadro a apresentação do dito certificado. É que ele pode ser um iconoclasta…

A vasta maioria destes certificados é simplesmente patética. Afirma-se simplesmente que nada consta no registo. Acresce que o certificado tem uma duração muito limitada no tempo, penso que três meses. É que, na mente esperta do legislador, o tipo pode cometer um crime a qualquer momento. Nos restantes casos estamos perante um atentado à privacidade e aos direitos de cidadania. Alguém que cometeu uma ilegalidade e foi sancionado por ela não devia poder continuar a ser penalizado por esse deslize. Em rigor, por esta via, no Portugal democrático todas as condenações continuam a ser acrescidas das famigeradas "medidas de segurança" do tempo do fascismo.

Tudo isto tem origem numa lógica demencial e inaceitável. O Estado considera os cidadãos como potenciais criminosos. Invertendo totalmente o princípio do contrato social e obrigando o cidadão a provar, a cada momento, que é uma pessoa de bem. Agora que tanto se fala em diminuir o peso do Estado na vida das pessoas é preciso entender que esse peso não se resume ao campo do económico. Apesar dos programas de simplificação da burocracia, continuamos a ter de apresentar papelada irrelevante e a sermos sujeitos a um escrutínio tanta vez de caráter inteiramente pessoal.

E não é só o Estado. Nas mais comuns iniciativas somos confrontados com exigências abstrusas. A necessidade de apresentação da identificação generalizou-se. Seguranças privadas, que não têm qualquer autoridade oficial, pedem-nos o bilhete de identidade para tudo e para nada. Para entrar em qualquer edifício fica registado num papelinho o nosso nome, o assunto que vamos tratar, a data e hora, a pessoa com quem vamos falar.

Não se sabe onde irão parar todos estes dados, nem a utilidade prática de tanta resma de papel. Eventualmente alguém passará toda esta literatura inócua para um computador, onde ficará à espera sabe-se lá de quê.

Estamos claramente a caminhar para uma sociedade hipervigiada. Na qual o cidadão vai perdendo direitos e sobretudo o direito à vida privada e à sua liberdade. Em nome de uma pretensa segurança pública os indivíduos são tratados com a maior das desconfianças, tratados como perigosos criminosos.

Há pois que libertar a sociedade civil. Agora que a esquerda anda tão fraca de ideias este é um domínio decisivo que devia ser objeto da sua maior atenção. Entre tanta coisa não cabe ao cidadão provar que não fez nada de mal, mas ao Estado demonstrar que ele fez algo de errado. O Estado de direito é isso. De contrário não temos direito mas perseguição e abuso de poder. O Registo Criminal é um resquício do totalitarismo. A certificação da inocência é um atentado à cidadania. Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.


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