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Recusemos a servidão

Não chegávamos a um milhão quando fomos ao mar. Metemo-nos numas "cascas de noz" e enfrentámos o medo e a superstição. Há qualquer coisa de inimaginável nesta epopeia. Lemos os cronistas, os historiadores e abrimos a boca de...

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Não chegávamos a um milhão quando fomos ao mar. Metemo-nos numas "cascas de noz" e enfrentámos o medo e a superstição. Há qualquer coisa de inimaginável nesta epopeia. Lemos os cronistas, os historiadores e abrimos a boca de espanto. De então até cá fomos, gradualmente, perdendo a altanaria e tombámos na submissão. Pêro Vaz de Caminha tinha 63 anos, idade impressionante para a época, quando escreveu esse magno tratado de jornalismo, "Novas do Achamento ou Carta a Dom Manuel, o Primeiro", que todo o aprendiz de repórter devia ser obrigado a ler. A prosa é fresca como uma alface. Rica em pormenores, fornece-nos a dimensão do humano e a grandeza que emerge quando descobrimos o que nos liga ao "outro."

Entregávamo-nos à erudição dos sábios, à sabedoria dos capitães-de-mar, à ilustração dos pilotos. E, não aparecesse o Diabo a tecê-las, nas mãos de Deus, embora não fôssemos um povo muito temente. Éramos mais de desafios e de pancadaria. Até nisso o Camões é exemplar: soldado, poeta e brigão. A Inquisição veio dar cabo dessa genuinidade. Muitos de então preferiram a aventura do imprevisível ao olho agudo dos inquisidores. Ficar, amar pretas, amarelas, castanhas ou escarlates, criar num leito de nações a medida do respeito humano - isso é nosso, pertence-nos. Entre o sangue e a violência, colonizar é estuprar mas é, também, moldar com o barro e as puas do mato a cubata familiar.

Orgulho-me de pertencer a esta estirpe. E, quando as evidências da actualidade fazem renascer a minha nefasta melancolia, vou aos livros. Que povo assombroso era este que, mesmo com as labaredas de Dom João III atrás de si, enfrentou as forças terríveis de uma Igreja sem complacência, inclemente e feroz, e desenhou novos meridianos e abriu outros horizontes à insaciável ânsia de saber!

Que nos aconteceu para chegarmos a isto? O medo, o medo começou devagar, cercou-nos, larvarmente, avantajou-se, fez-se parte integrante do nosso modo de ser. Ainda nos não libertámos da ameaça latente. Os três séculos de Inquisição deixaram nódoas. O conceito de liberdade nunca foi apanágio de uma Igreja cumpliciada com o fascismo. E ela não podia dizer-se ignorante do que se passava. O que se passava era o cárcere, a tortura, o assassínio político, a desgraça em milhares de famílias, o decepamento da inteligência portuguesa, o exílio e a deportação dos melhores portugueses. As vozes recalcitrantes da própria Igreja foram caladas pelos bispos. É uma história medonha, cheia de sombras e de inquietantes crimes.

A crítica à igreja do salazarismo nunca foi feita. Nem a sua conivência com o capitalismo mais selvagem foi analisada à luz dos próprios tempos da conivência. O que acontece hoje, em todos os sectores da sociedade portuguesa, resulta dessa ausência de estudo e de apreciação. O medo nunca foi extirpado, o medo nunca foi seriamente removido. O medo alimenta a superstição religiosa, e sustenta a autoridade dos mitos sobre a razão. Não falo de fé. Isso é outra coisa e pertence aos domínios mais íntimos de cada um. Escrevo sobre os malefícios da crendice, que não só conduzem a cenas e propósitos deploráveis como representam uma técnica de servidão.

O cinquentenário da inauguração do Cristo-Rei, o Cristo da Outra Banda como lhe chama o povo, foi a demonstração, muitíssimo bem organizada, de um exagero que se pretende corresponder aos desejos populares. Foram utilizados, de novo, os meneios do medo, em horas de aflição popular. O recurso ao transcendente (no mais execrável sentido da palavra) transformou massas humanas desesperadas pelo desemprego, pela carência de perspectivas, pela fome e pela miséria, numa robotização infame.

O dinheiro que se gastou, em nome não se sabe bem de quê, a extrema manipulação das almas, as manigâncias do fanatismo não ajudam a reimaginar a política nem a reanimar a solidariedade - como pretende D. José Policarpo. Enfrentar e combater a espessa ameaça que persegue e domina os mais pobres não se faz com rezas nem com desfiles medievais. Os bispos sabem-no bem. A insistência nesses métodos é perversa: pode dar a ilusão momentânea de uma realidade aparente, mas não é nunca solução dos problemas.

A Igreja, em consciência, pode aceitar a ilusória legitimidade de um acto manuseado e controlador? As horas e horas seguida e extremamente maçadoras que a RTP (sobretudo) atribuiu às comemorações, foram um descalabro. Nem um comentário crítico, nem a mais leve análise histórica: tudo constituindo a representação da subserviência mais sabuja. É por estas e por outras que a democracia portuguesa, em trinta e cinco módicos anos de existência, é a mais conservadora, a mais retrógrada e, até, a mais reaccionária da Europa. E a mais frágil e ameaçada.

O medo exprime-se e faz-se representar das formas e dos modos mais diversos. E tende a ocupar todo o espaço de definição política, cultural e moral da nação. É um fenómeno conhecido de fragmentação social, que não conjuga nenhuma ordem de progresso, e serve de domínio, quase absoluto, de uma classe sobre outra. Temos de nos cuidar, se não quisermos pertencer à mais vil das servidões
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