Opinião
Quando a "soberania" ameaça a saúde global
Eis um conceito do qual provavelmente nunca ouviu falar: "soberania viral". Devemos esta perigosa ideia ao ministro indonésio da Saúde, Siti Fadilah Supari, que afirma que os vírus letais são propriedade soberana de cada nação apesar de atravessarem fronteiras e poderem provocar uma ameaça pandémica a todos os povos do mundo. Os líderes políticos de todo o mundo devem ter isto em conta e tomarem medidas firmes.
A vasta maioria dos focos de gripe aviária ocorridos nos últimos quatro anos, tanto nos humanos como nas aves de capoeira, aconteceu na Indonésia. Foram contabilizados pelo menos 53 tipos de vírus de gripe aviária H5N1 nas galinhas e nos habitantes daquele país, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Ainda assim, desde 2005, a Indonésia partilhou com a OMS amostras de apenas duas das mais de 135 pessoas que se sabe terem sido infectadas com o H5N1 (110 das quais morreram). Pior ainda, a Indonésia deixou de notificar a OMS, nos prazos previstos, sobre os focos de gripe aviária ou sobre as ocorrências em humanos. Desde 2007, o governo indonésio tem desafiado abertamente a regulamentação internacional de saúde e uma série de outros acordos da OMS dos quais a Indonésia é signatária.
Além disso, o governo indonésio está a ameaçar encerrar a Unidade de Investigação Médica 2 da Marinha dos Estados Unidos (NAMRU-2), um laboratório de saúde pública composto por cientistas militares indonésios e norte-americanos. A NAMRU-2 é uma das melhores instalações do mundo de vigilância das doenças, que proporciona a todos os que trabalham na área da saúde, no mundo inteiro, informação vital e transparente. O governo indonésio acusou os cientistas da NAMRU-2 de toda a espécie de coisas, como o facto de aproveitarem o seu vírus "soberano" para produzirem a gripe aviária H5N1 como parte de um alegado plano de guerra biológica. Não há quaisquer provas que sustentem estas acusações absurdas.
Há um ano, as declarações de Supari acerca da "soberania viral" pareceram bizarras. No entanto, o facto inquietante é que aquela noção se metamorfoseou num movimento global, impulsionado por sentimentos auto-destrutivos e anti-Ocidente. Em Maio, o ministro indiano da Saúde, Anbumani Ramadoss, defendeu o conceito numa disputa com o Bangladesh, e o Movimento dos Não-Alinhados – organização com 112 países membros que sobreviveu à época da Guerra Fria – concordou em analisar formalmente a adopção do conceito na reunião que vai realizar em Novembro.
A Indonésia defende que o direito de uma nação a controlar toda a informação sobre vírus descobertos a nível local deve ser protegida através dos mesmos mecanismos que a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) usa para garantir os direitos dos países pobres à detenção de patentes sobre as sementes das suas plantas indígenas. Nos termos do acordo da FAO sobre sementes, uma nação pode registar plantas, partilhar as suas sementes e obter benefícios dos produtos resultantes. Esta útil medida reduz as práticas exploratórias que por vezes permitem às grandes multinacionais e aos governos abastados obterem enormes lucros da agricultura indígena.
No entanto, é uma loucura perigosa alargar esta política aos vírus. Se o conceito de "soberania viral" tivesse sido aplicado ao VIH [Vírus da Imunodefeciência Humana] há 25 anos, hoje em dia não disporíamos de bases de dados que centralizam os milhares de variedades do VIH; essas bases de dados permitem aos cientistas testarem medicamentos e vacinas contra todos os tipos de estirpes do vírus responsável pela SIDA. É ainda mais absurdo alargar a noção de soberania a vírus que, como a gripe, podem ser propagados ao longo das fronteiras internacionais através das aves migratórias.
Na actual era da globalização, a incapacidade para disponibilizar livremente amostras de vírus ameaça o aparecimento de uma nova estirpe de gripe que pode passar despercebida até ser capaz de dizimar tantas pessoas como a pandemia que matou dezenas de milhões em 1918. Conforme o mundo aprendeu com o aparecimento da Síndrome Respiratória Aguda (SARS) – que começou por aparecer na China, em 2002, mas que só foi reportada pelas autoridades chinesas quando já se tinha propagado a quatro outros países –, os riscos de saúde globalmente partilhados exigem uma absoluta transparência global.
Há fortes provas, por parte de uma variedade de fontes, de que existem formas do vírus da gripe aviária a circular na Indonésia que são mais virulentas do que num outro local qualquer e de que, nalguns casos, podem ser propagadas directamente de uma pessoa para outra. A OMS está a tentar há dois anos, sem êxito, chegar a um acordo com a Indonésia. Pressionada por cientistas de todo o mundo, a Indonésia concordou em Junho passado partilhar dados genéricos sobre algumas das suas amostras virais, mas não sobre os micróbios. Sem acesso aos vírus, é impossível verificar a exactidão daquela informação genérica ou desenvolver vacinas contra os micróbios letais.
É escandaloso que Supari tenha afirmado que a OMS confiaria quaisquer vírus – não apenas o H5N1 – a farmacêuticas, que por sua vez fabricariam produtos destinados a fazer adoecer as pessoas pobres, de forma a "prolongarem o seu rentável negócio de venda de novas vacinas" (uma acusação estranhamente parecida com a do enredo do romance de John le Carré intitulado "O Fiel Jardineiro"). A OMS obteve promessas das maiores farmacêuticas do mundo de que não explorariam os repositórios internacionais de dados genéricos para benefício comercial, mas isso não foi o suficiente para satisfazer a Indonésia.
A reivindicação da Indonésia de que a NAMRU-2 é uma instalação de armas biológicas tem de ser frontalmente refutada. O embaixador dos EUA na Indonésia, Cameron Hume, está a tentar activamente evitar uma catástrofe. Até agora, tem havido apoio suficiente por parte das autoridades norte-americanas. Elas têm que se envolver. E a China tem de usar a sua forte influência junto da Indonésia relativamente a esta questão – também é do seu próprio interesse.
A incapacidade de partilhar estirpes virais potencialmente pandémicas com as agências de saúde internacionais é moralmente repreensível. Permitir que a Indonésia e outros países transformem esta questão em mais uma disputa entre ricos e pobres, países islâmicos e ocidentais, será trágico – e poderá levar a uma crise de saúde devastadora, em qualquer lado e a qualquer momento.
Ainda assim, desde 2005, a Indonésia partilhou com a OMS amostras de apenas duas das mais de 135 pessoas que se sabe terem sido infectadas com o H5N1 (110 das quais morreram). Pior ainda, a Indonésia deixou de notificar a OMS, nos prazos previstos, sobre os focos de gripe aviária ou sobre as ocorrências em humanos. Desde 2007, o governo indonésio tem desafiado abertamente a regulamentação internacional de saúde e uma série de outros acordos da OMS dos quais a Indonésia é signatária.
Há um ano, as declarações de Supari acerca da "soberania viral" pareceram bizarras. No entanto, o facto inquietante é que aquela noção se metamorfoseou num movimento global, impulsionado por sentimentos auto-destrutivos e anti-Ocidente. Em Maio, o ministro indiano da Saúde, Anbumani Ramadoss, defendeu o conceito numa disputa com o Bangladesh, e o Movimento dos Não-Alinhados – organização com 112 países membros que sobreviveu à época da Guerra Fria – concordou em analisar formalmente a adopção do conceito na reunião que vai realizar em Novembro.
A Indonésia defende que o direito de uma nação a controlar toda a informação sobre vírus descobertos a nível local deve ser protegida através dos mesmos mecanismos que a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) usa para garantir os direitos dos países pobres à detenção de patentes sobre as sementes das suas plantas indígenas. Nos termos do acordo da FAO sobre sementes, uma nação pode registar plantas, partilhar as suas sementes e obter benefícios dos produtos resultantes. Esta útil medida reduz as práticas exploratórias que por vezes permitem às grandes multinacionais e aos governos abastados obterem enormes lucros da agricultura indígena.
No entanto, é uma loucura perigosa alargar esta política aos vírus. Se o conceito de "soberania viral" tivesse sido aplicado ao VIH [Vírus da Imunodefeciência Humana] há 25 anos, hoje em dia não disporíamos de bases de dados que centralizam os milhares de variedades do VIH; essas bases de dados permitem aos cientistas testarem medicamentos e vacinas contra todos os tipos de estirpes do vírus responsável pela SIDA. É ainda mais absurdo alargar a noção de soberania a vírus que, como a gripe, podem ser propagados ao longo das fronteiras internacionais através das aves migratórias.
Na actual era da globalização, a incapacidade para disponibilizar livremente amostras de vírus ameaça o aparecimento de uma nova estirpe de gripe que pode passar despercebida até ser capaz de dizimar tantas pessoas como a pandemia que matou dezenas de milhões em 1918. Conforme o mundo aprendeu com o aparecimento da Síndrome Respiratória Aguda (SARS) – que começou por aparecer na China, em 2002, mas que só foi reportada pelas autoridades chinesas quando já se tinha propagado a quatro outros países –, os riscos de saúde globalmente partilhados exigem uma absoluta transparência global.
Há fortes provas, por parte de uma variedade de fontes, de que existem formas do vírus da gripe aviária a circular na Indonésia que são mais virulentas do que num outro local qualquer e de que, nalguns casos, podem ser propagadas directamente de uma pessoa para outra. A OMS está a tentar há dois anos, sem êxito, chegar a um acordo com a Indonésia. Pressionada por cientistas de todo o mundo, a Indonésia concordou em Junho passado partilhar dados genéricos sobre algumas das suas amostras virais, mas não sobre os micróbios. Sem acesso aos vírus, é impossível verificar a exactidão daquela informação genérica ou desenvolver vacinas contra os micróbios letais.
É escandaloso que Supari tenha afirmado que a OMS confiaria quaisquer vírus – não apenas o H5N1 – a farmacêuticas, que por sua vez fabricariam produtos destinados a fazer adoecer as pessoas pobres, de forma a "prolongarem o seu rentável negócio de venda de novas vacinas" (uma acusação estranhamente parecida com a do enredo do romance de John le Carré intitulado "O Fiel Jardineiro"). A OMS obteve promessas das maiores farmacêuticas do mundo de que não explorariam os repositórios internacionais de dados genéricos para benefício comercial, mas isso não foi o suficiente para satisfazer a Indonésia.
A reivindicação da Indonésia de que a NAMRU-2 é uma instalação de armas biológicas tem de ser frontalmente refutada. O embaixador dos EUA na Indonésia, Cameron Hume, está a tentar activamente evitar uma catástrofe. Até agora, tem havido apoio suficiente por parte das autoridades norte-americanas. Elas têm que se envolver. E a China tem de usar a sua forte influência junto da Indonésia relativamente a esta questão – também é do seu próprio interesse.
A incapacidade de partilhar estirpes virais potencialmente pandémicas com as agências de saúde internacionais é moralmente repreensível. Permitir que a Indonésia e outros países transformem esta questão em mais uma disputa entre ricos e pobres, países islâmicos e ocidentais, será trágico – e poderá levar a uma crise de saúde devastadora, em qualquer lado e a qualquer momento.