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Opinião
08 de Setembro de 2006 às 13:59

Portugal em estado de sonolência

O discurso político da «reentrada» foi pouco menos do que medíocre. Não era de esperar outra coisa. As palavras estão estafadas, e os dirigentes dos cinco principais partidos, com cadeiras na Assembleia, demonstram uma comovedora falta de ideias.

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A famosa frase garreteana: «Não lêem, não estudam, não reflectem, não conhecem o País e em nome dele estultamente falam», pode ser aplicada à melancólica actualidade portuguesa. Assim como para se ser leitor é preciso talento, talento também será necessário para se ser cidadão. A casualidade resulta da causalidade. E a imbecilidade é embriagante.

Os comentadores do óbvio pululam: articulistas sem verve, sem engenho, sem garra, sem vergonha e sem perigo servem-nos piedosos anestésicos. Não incitam, não provocam, não suscitam o princípio da contradição, porque não sabem exprimir o que define o pensamento: a explosão de múltiplas incertezas. O País vive em estado de sonolência.

De que nos falaram os dirigentes políticos, no último fim-de-semana? Em rigor, de coisa alguma. Colocam o peso das tecnologias como profissão de fé; ou dissertam sobre os 3 por cento «imprescindíveis» para o crescimento; ou ameaçam com mobilizações, cujos resultados se pré-anunciam preguiçosos; ou, então, anunciam pactos e compromissos de ardilosas consequências. A responsabilidade do descalabro da vida portuguesa parece não ter donos. Sócrates posa de leão indomesticável. Marques Mendes, de indignado gracioso. Jerónimo de Sousa, de radical sorridente e insatisfeito. Francisco Louçã, de adjectivo violento e muito Alain Krivine. Ribeiro e Castro, de patriotismo vaticano e anacrónico. Todos respiram, afinal, um clima que já não há. Vivem para as câmaras das televisões, consultam nervosamente os relógios, afim de estar aptos na abertura dos telejornais, e proporcionam, cada vez mais, o acentuar dos nossos fúnebres desinteresses. Por sua vez, as televisões filmam, bocejantes e abúlicas, o calendário político.

Os dirigentes têm agido através de cálculos, de intuições e de «pareceres». E a aplicar aos mais fracos as piores medidas coercitivas. A mistura do frívolo e do impositivo com o afectuoso e o inevitável tornou-se norma. Mas não é processo de resolver os graves problemas que nos afectam. À excepção da década cavaquista, em que a tensão, associada à crispação e ao autoritarismo, atingiu as raias da esquizofrenia, as relações dos governantes com os governados constrói-se sob o império da cenoura e do chicote. E do estribilho: quem aparece está na moda; quem não está na moda não aparece.

Existe uma autarcia dos media? Claro que sim. A promoção de uma casta de medíocres, na política, na literatura, no jornalismo, nas artes, apenas porque «aparecem» (onde?, como?, através de quê e de quem?) põe em questão os direitos culturais numa perspectiva histórica. Quem não aparece, esquece. Ora bem: não são os melhores (tomando esta qualificação com a prudência exigida) os habituais nas televisões, nas rádios e na Imprensa. O espaço de transgressão, pressuposto pela cultura, deixou de existir. E a transgressão implica uma componente de memória.

Os grandes nomes que, na segunda metade do século XX, moldaram a fisionomia da pátria moral, foram escorraçados das páginas dos jornais, omitidos nos outros meios de comunicação, por ignorância, por inépcia mas, também, por ideologia. Simplificações abusivas, estratégias de transmissão de amizades e a tentação da irresponsabilidade atingem, repetidamente, proporções grotescas.

A era do acesso deu nisto: na reorganização de um outro tipo de existência na qual a comunicação de saberes foi substituída pelo «fresco», «leve», «ligeiro» e «indolor». Não se trata da ressurreição, absurda e abstrusa, de um passado histórico ou mítico. Mas sim da exigência de interpretação dos novos sinais, que permitem transcender a «clausura moderna».

A verdade é que nenhum político consegue falar no dramatismo da crise da cultura ocidental, da situação residual das ideologias ou do aniquilamento dos valores de uma civilização de mais de dois mil anos. O pequeno universo da nossa portuguesa humanidade continua persistentemente fechado. Ainda recentemente, Klaus Schwab, fundador do Fórum Económico Mundial, declarou que «o falhanço do sistema ameaça-nos a todos(?) Duvido profundamente que as instituições encarregadas de promover a paz no mundo, a estabilidade financeira, o desenvolvimento socioeconómico e a livre circulação de bens e serviços sejam ainda capazes de enfrentar estes desafios pelos seus próprios meios».

Se o discurso político fosse elevado ou, pelo menos, resultado de estudo, de cultura e de reflexão, estou em crer que os valores formativos da nossa civilização não estariam, como estão, ao que parece, irremediavelmente condenados. 
 
APOSTILA 1 - Um escabroso correspondente «em linha», cujo pseudónimo coloco à margem deste texto, tem por doentio propósito escrever coisas abjectas sobre a minha dignidade. A indecência deste sórdido canalha anónimo desceu, agora, à maior das vilanias: acusou-me de praticar saneamentos no «Diário de Notícias». Na realidade, não só nunca trabalhei naquele jornal como me insurgi contra os saneamentos, registados ali e em outros locais, porque sempre defendi o princípio de que trabalhadores não saneiam trabalhadores. A orfandade sem esperança de certos indivíduos impele-os a tudo o que de pior neles existe. Goebbels ensinou-os que «uma mentira repetida transforma-se numa verdade consentida». Aprendi que não se responde a um pulha. Mas o respeito por aqueles que me lêem, sem estarem dominados pela vocação da infâmia e da desonra, leva-me a este esclarecimento. E a adiantar que às ameaças indefinidas costumo reagir de modo belicoso. O anónimo deixará, em breve, de o ser; e responderá pela ignomínia.

APOSTILA 2 - Manuel Monteiro envia-me um «mail» e corrige-me um disparate. Na última crónica chamei de «O Homem e o Mar» à obra-prima de Hemingway, «O Velho e o Mar». A Manuel Monteiro os meus agradecimentos.

APOSTILA 3 - XIS escreve-me e, entre outros comentários, pede-me lhe indique alguns livros de poesia. Aí vão: «O Sentimento dum Ocidental», de Cesário Verde; «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira; «Poesias Completas», de Alexandre O’Neill; «Pena Capital», de Mário Cesariny; «Poesia - 1997/2000», de Vasco Graça Moura; «Poeta Militante», de José Gomes Ferreira; «Poemas Completos», de Manuel da Fonseca; «Antologia Poética», de Natália Correia; todos os livros de Sophia de Melo Breyner Andresen. Acaso consiga, recomendo-lhe, também, «Da Morte. Odes Mínimas», da brasileira Hilda Hilst. E «Poesias Completas», de João Cabral de Melo Neto; e «Toda Poesia», de Ferreira Gullar, e, claro!, tudo de Carlos Drummond de Andrade, também estes, brasileiros.

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