Opinião
Por que flutua o Titanic?
Cem anos após o naufrágio do "Titanic", vários navios de cruzeiro vão convergir para o local do acidente, onde os turistas irão homenagear os falecidos.
Cem anos após o naufrágio do "Titanic", vários navios de cruzeiro vão convergir para o local do acidente, onde os turistas irão homenagear os falecidos. Na mesma ocasião, em Londres, a "Royal Philarmonic Orchestra", que tantas vezes tocou o Requiem pelas vítimas da guerra, de Benjamin Britten irá executar um Requiem pela vítimas do Titanic, da autoria do antigo "Bee Gee" Robin Gibb. Em todo o Mundo e com especial incidência nos Estados Unidos e Inglaterra inúmeras iniciativas, muitas das quais podem ser referenciadas no "New York Times", recordarão a tragédia, proporcionando ganhos interessantes aos seus promotores.
Enquanto isto, as visitas aos despojos no fundo mar continuam ao preço de 60.000 dólares, as peças resgatadas são vendidas por fortunas em leilões e Leonardo di Caprio e Kate Winslett voltam, agora em versão 3D, a levar lágrimas a todo o Mundo com o seu romântico e trágico par, que mais firmou, ainda, a tragédia do Titanic no imaginário popular, lançando-os para o estrelato, quando a amargura ainda se não apoderara deles, como viria a suceder, pela mão de Sam Mendes, no extraordinário "Revolutionary Road".
Quando referi a alguns amigos que me propunha escrever sobre o "Titanic", recebi deles um sorriso um pouco contrafeito, adequado ao pensamento que me preparava para o enésimo comentário glosando o tema Portugal e a Europa avançam qual "Titanic" para o naufrágio. Apesar de admitir que essa possibilidade existe, não é esta a razão que me leva a revisitar o assunto, acompanhando as centenas de milhares ou milhões de pessoas que o farão por este mundo, ainda que com uma perspectiva seguramente bem menos cândida do que a generalidade deles e também bem menos comercial do que a de alguns outros.
Aquilo que me inquieta e desafia é, de facto, a indagação sobre o que faz o fascínio do tema Titanic. Com o maior respeito pelas poucas mais de mil e quinhentas pessoas que faleceram no desastre, não consigo deixar de recordar – e em que quantidade, infelizmente – muitos outros acontecimentos bem mais trágicos e destruidores de vidas humanas, que não merecem a mesma atenção e, desde logo, o naufrágio do "Lusitânia", atingido por um submarino alemão três anos depois.
Provavelmente que a explicação, muitas vezes adiantada, de que o interesse é devido ao facto de o desastre corresponder a uma demonstração de, que sempre que o homem proclama a invencibilidade de um engenho seu, a natureza ou as divindades tratam de o reconduzir à sua verdadeira dimensão, tem alguma razão de ser.
Para alguns economistas, com Bruno Frey à cabeça, o "Titanic" e o seu confronto com o "Lusitânia" oferecem um excelente campo para analisar o comportamento humano em condições de intenso "stress" e indagar da sua transposição para o campo económico o que, sobretudo nos dias que correm, constitui um estudo importante que para o economista suíço se traduziu, ironicamente, num verdadeiro desastre, já que foi justificadamente denunciado por "auto-plágio", prática consistente na publicação de artigos idênticos em várias revistas e que é objecto do mais severo julgamento na comunidade científica internacional, ainda que não na portuguesa como é sabido.
Nada disto justifica, no entanto, o interesse de massa pela tragédia marítima, mas esse interesse, que não deixa de nos remeter para o "air du temps", justifica que procuremos compreender a mensagem que os acontecimentos passam para a sociedade e que fazem que ela se comova e seduza bem mais com os infaustos acontecimentos de há um século do que com as tragédias humanas dos nossos dias.
Creio que a primeira resposta se deve procurar na imagem de beleza e "glamour" dos milionários valsando ao som da bela orquestra sem suspeitar que era a última valsa, ou deliciando-se com a delicada refeição que tantos restaurantes tentam agora replicar para nosso encanto. A isso acrescerá, ainda, a imagem de cavalheirismo, expressa na percentagem muito maior de mulheres e crianças salvas (72 e 50 por cento respectivamente) do que de homens (18%), bem como da responsabilidade e ética de uma tripulação, que se sacrificou para salvar os passageiros, em contraste com bem mais recentes acidentes marítimos.
Roger Cohen, o heterodoxo cronista do "New York Times", a quem devo o interesse pelo tema – apanhado num artigo seu, lido a caminho de Hong-Kong, num desses espantosos aviões que desafiam, também eles, a natureza e as divindades – sustenta que o fascínio resulta da percepção simbólica do acontecimento como o termo de um período de paz e prosperidade que iria ser, em breve interrompido na Europa.
Na sequência desse raciocínio, poder-se-á pensar que um século depois e na sequência da crise económica e financeira aspiramos, de novo, a este mundo de elegância, beleza e cavalheirismo que nos afaste dos desgastantes quotidianos. Em referencia ao cinema dir-se-á que preferimos ver a extraordinária Kate Winslet separada de Di Caprio pelo destino e pela tragédia do que pela usura da relação e a opressão da vida quotidiana, como em sucede "Revolutionary Road".
Se persistirmos em reflectir sobre o tema, provavelmente seremos, contudo, levados a pensar que a nostalgia é mais funda e se confunde com a permanência de um modelo de sociedade que parece ser aquele a que a vasta maioria das pessoas aspira: uma sociedade claramente hierarquizada, que se reflecte num navio em que 63% dos passageiros da primeira classe sobrevivem, da segunda classe escapam com vida 43% e da terceira – sem direito a apoio da tripulação e separada da zona dos salva vidas por uma parede que impedia o contagio dos ricos – apenas conseguem escapar 25%.
Sabido que a distribuição da riqueza no Ocidente e tal como se começa a desenhar nas futuras potências dominantes, atira a generalidade da população para a terceira classe, como se explica, então, essa nostalgia?
Muito provavelmente porque muitos conservam a ideia de que algum dia chegarão à primeira classe e aí valsarão e beberão champanhe mas, sobretudo, porque poderão sempre ter a imagem da beleza, agora tão facilitada pelo desenvolvimento tecnológico e que essa imagem chegará para aconchegar o frio das noites de inverno, sem correr risco.
E, chegados aqui, poderemos perceber melhor porque se aceitam receitas e políticas cuja consequência inquestionada é a de aumentar a desigualdade na distribuição da riqueza. Há sempre um "Titanic" pelo qual podemos chorar, poupando as nossa lágrimas noutros casos. E, chegado também eu aqui, percebo que sempre escrevi aquilo que não pensava, isto é um artigo a explicar porque é que Portugal e a Europa são, efectivamente, o "Titanic".
Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Presidente do Instituto Europeu e do IDEFF
Enquanto isto, as visitas aos despojos no fundo mar continuam ao preço de 60.000 dólares, as peças resgatadas são vendidas por fortunas em leilões e Leonardo di Caprio e Kate Winslett voltam, agora em versão 3D, a levar lágrimas a todo o Mundo com o seu romântico e trágico par, que mais firmou, ainda, a tragédia do Titanic no imaginário popular, lançando-os para o estrelato, quando a amargura ainda se não apoderara deles, como viria a suceder, pela mão de Sam Mendes, no extraordinário "Revolutionary Road".
Aquilo que me inquieta e desafia é, de facto, a indagação sobre o que faz o fascínio do tema Titanic. Com o maior respeito pelas poucas mais de mil e quinhentas pessoas que faleceram no desastre, não consigo deixar de recordar – e em que quantidade, infelizmente – muitos outros acontecimentos bem mais trágicos e destruidores de vidas humanas, que não merecem a mesma atenção e, desde logo, o naufrágio do "Lusitânia", atingido por um submarino alemão três anos depois.
Provavelmente que a explicação, muitas vezes adiantada, de que o interesse é devido ao facto de o desastre corresponder a uma demonstração de, que sempre que o homem proclama a invencibilidade de um engenho seu, a natureza ou as divindades tratam de o reconduzir à sua verdadeira dimensão, tem alguma razão de ser.
Para alguns economistas, com Bruno Frey à cabeça, o "Titanic" e o seu confronto com o "Lusitânia" oferecem um excelente campo para analisar o comportamento humano em condições de intenso "stress" e indagar da sua transposição para o campo económico o que, sobretudo nos dias que correm, constitui um estudo importante que para o economista suíço se traduziu, ironicamente, num verdadeiro desastre, já que foi justificadamente denunciado por "auto-plágio", prática consistente na publicação de artigos idênticos em várias revistas e que é objecto do mais severo julgamento na comunidade científica internacional, ainda que não na portuguesa como é sabido.
Nada disto justifica, no entanto, o interesse de massa pela tragédia marítima, mas esse interesse, que não deixa de nos remeter para o "air du temps", justifica que procuremos compreender a mensagem que os acontecimentos passam para a sociedade e que fazem que ela se comova e seduza bem mais com os infaustos acontecimentos de há um século do que com as tragédias humanas dos nossos dias.
Creio que a primeira resposta se deve procurar na imagem de beleza e "glamour" dos milionários valsando ao som da bela orquestra sem suspeitar que era a última valsa, ou deliciando-se com a delicada refeição que tantos restaurantes tentam agora replicar para nosso encanto. A isso acrescerá, ainda, a imagem de cavalheirismo, expressa na percentagem muito maior de mulheres e crianças salvas (72 e 50 por cento respectivamente) do que de homens (18%), bem como da responsabilidade e ética de uma tripulação, que se sacrificou para salvar os passageiros, em contraste com bem mais recentes acidentes marítimos.
Roger Cohen, o heterodoxo cronista do "New York Times", a quem devo o interesse pelo tema – apanhado num artigo seu, lido a caminho de Hong-Kong, num desses espantosos aviões que desafiam, também eles, a natureza e as divindades – sustenta que o fascínio resulta da percepção simbólica do acontecimento como o termo de um período de paz e prosperidade que iria ser, em breve interrompido na Europa.
Na sequência desse raciocínio, poder-se-á pensar que um século depois e na sequência da crise económica e financeira aspiramos, de novo, a este mundo de elegância, beleza e cavalheirismo que nos afaste dos desgastantes quotidianos. Em referencia ao cinema dir-se-á que preferimos ver a extraordinária Kate Winslet separada de Di Caprio pelo destino e pela tragédia do que pela usura da relação e a opressão da vida quotidiana, como em sucede "Revolutionary Road".
Se persistirmos em reflectir sobre o tema, provavelmente seremos, contudo, levados a pensar que a nostalgia é mais funda e se confunde com a permanência de um modelo de sociedade que parece ser aquele a que a vasta maioria das pessoas aspira: uma sociedade claramente hierarquizada, que se reflecte num navio em que 63% dos passageiros da primeira classe sobrevivem, da segunda classe escapam com vida 43% e da terceira – sem direito a apoio da tripulação e separada da zona dos salva vidas por uma parede que impedia o contagio dos ricos – apenas conseguem escapar 25%.
Sabido que a distribuição da riqueza no Ocidente e tal como se começa a desenhar nas futuras potências dominantes, atira a generalidade da população para a terceira classe, como se explica, então, essa nostalgia?
Muito provavelmente porque muitos conservam a ideia de que algum dia chegarão à primeira classe e aí valsarão e beberão champanhe mas, sobretudo, porque poderão sempre ter a imagem da beleza, agora tão facilitada pelo desenvolvimento tecnológico e que essa imagem chegará para aconchegar o frio das noites de inverno, sem correr risco.
E, chegados aqui, poderemos perceber melhor porque se aceitam receitas e políticas cuja consequência inquestionada é a de aumentar a desigualdade na distribuição da riqueza. Há sempre um "Titanic" pelo qual podemos chorar, poupando as nossa lágrimas noutros casos. E, chegado também eu aqui, percebo que sempre escrevi aquilo que não pensava, isto é um artigo a explicar porque é que Portugal e a Europa são, efectivamente, o "Titanic".
Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Presidente do Instituto Europeu e do IDEFF
Mais artigos do Autor
O Porto tem sorte
09.04.2014
"Greed is Good"
11.03.2014
Um Papa em luta por um mundo mais justo
12.02.2014
Duas visões do Mundo
06.01.2014
A Honra Perdida de Christine Lagarde
17.12.2013
Seis observações em torno de uma reforma
25.09.2013