Opinião
Pode a AT reduzir os atrasos crónicos na justiça fiscal?
Continua a impor-se que a AT reveja a cultura de desrespeito pela existência de sólida jurisprudência favorável aos contribuintes.
Discute-se hoje o papel da Autoridade Tributária (AT) na resolução dos atrasos crónicos na justiça fiscal. Em resumo, a AT litiga, em muitas situações, sem que os tribunais lhe reconheçam fundamento legal para o efeito, originando ou dando seguimento a processos que continuam a congestionar os tribunais fiscais. Quem o afirma são os próprios atores judiciais, muito embora pudesse já chegar-se a essa mesma conclusão através do contacto com casos concretos de diferentes contribuintes.
Não se questiona, realce-se, que, tal como os contribuintes, a AT tenha o direito de contestar as decisões dos tribunais que lhe sejam desfavoráveis. Reflete-se, antes, sobre a possibilidade de, assumindo-se como parte privada que não é (porque em causa está o interesse público de cobrar impostos apenas quando os mesmos se mostrem devidos), a AT se mova processualmente por critérios que façam prevalecer interesses patrimoniais sobre a lei.
A atualidade tem contado, aliás, com um conjunto de episódios em que se pode afirmar que a conduta da AT terá excedido o limite da legalidade. Em resultado, têm sido realizadas, em alguns casos, alterações legislativas - o que se verificou, designadamente, na sequência das penhoras realizadas no âmbito de operações stop, em maio de 2019 - e, noutros, produzidos relatórios em que esta característica é destacada como um dos fatores que contribuem para a asfixia da justiça tributária. Por exemplo, o Relatório do Observatório Permanente de Justiça, de fevereiro de 2017, contém depoimentos segundo os quais "a administração tributária continua a vislumbrar no contribuinte um potencial infrator. (…) Há muitos problemas que podiam ser resolvidos em sede graciosa, retirando-os dos tribunais. E esta cultura não (…) é um problema estrutural" ou, ainda, "A Fazenda Pública (…), mesmo em casos em que há jurisprudência reconhecida, continua a litigar".
O dever de a AT fazer refletir as decisões judiciais dos tribunais superiores na sua atuação resulta da Lei Geral Tributária, havendo ainda outros diplomas, como o Decreto-Lei n.º 81/2018, que pretenderam reforçar este aspeto, embora, as mais das vezes, sem que fossem atingidos os resultados práticos visados. De acordo com aquele diploma, a AT deveria rever, até 31.12.2019, os atos tributários relativamente aos quais houvesse jurisprudência reiterada favorável aos contribuintes. Contudo, mesmo em casos em que este requisito se verificava de forma clara, a AT absteve-se de rever aqueles atos desfavoráveis, tendo mantido os processos em que os mesmos eram discutidos.
Há outras medidas essenciais para reduzir as pendências e os tempos de decisão dos processos fiscais, como aquelas introduzidas pela recente reforma do contencioso tributário, que poderão também servir o propósito de produzir jurisprudência mais uniforme e clara, que torne menos plausível a ausência da sua integração na atuação da AT. Hoje é já possível aos tribunais tributários de primeira instância, em certos casos, fazer intervir todos os juízes do tribunal no julgamento da causa ou solicitar ao STA uma pronúncia vinculativa sobre a questão que se coloca. São ferramentas cuja inclusão na lei é de louvar. Continua, contudo, a impor-se que a AT reveja a cultura de desrespeito pela existência de sólida jurisprudência favorável aos contribuintes, dessa forma contribuindo para o descongestionamento dos tribunais tributários e para uma perceção da justiça fiscal mais favorável ao investimento em Portugal.