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20 de Fevereiro de 2012 às 00:26

Percursos e desafios na Saúde

O maior desafio que é lançado aos sistemas de saúde no futuro é simplesmente este: como compatibilizar os custos de saúde com o direito dos cidadãos aos melhores cuidados.

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Poucos como António Correia de Campos e Jorge Simões conhecem tão bem o percurso da saúde neste país. Sobre ele reflectem com inteligência e crítica neste volume, fazendo-o, em grande medida, sem os ante-olhos ideológicos de que falava o filósofo, embora não enjeitem (e isso aflora aqui e ali no texto) a sua matriz política.

Alguns poderão dizer com enfado: "Mais um livro sobre saúde!". Mas a clareza da narrativa, o seu enquadramento numa outra moldura geopolítica, o ordenamento sistemático da legislação pertinente que foi balizando o caminho das políticas de saúde, tornam este livro de estudo, no mais puro sentido académico, original e útil.

"A saúde como política pública" é uma introdução indispensável ao que se segue e a análise comparativa dos dois modelos de financiamento (bismarckiano e beveridgeano) e as suas variações é exemplar. Qualquer destas modalidades recebeu o impacto transformador de uma revolução de imprevisível consequência. Refiro-me às tecnologia de comunicação e todos os seus derivados — telemedicina, e-health, internet –, que têm alterado decisivamente a configuração do acto médico.

Os autores citam o Relatório Mundial de Saúde, e chamam a atenção para o facto de entre 20 a 40% dos recursos para a área saúde serem desperdiçados, e indicam como medidas, entre outras, a redução do erro médico e o recurso a "guidelines" ou protocolos. Estas são duas áreas que têm merecido recentemente atenção dos nossos governantes e o apoio entusiástico da Ordem dos Médicos. Deve dizer-se que são objectivos louváveis mas, até agora, de sucesso limitado nos países que se têm adiantado neste sentido.

Em relação às políticas europeias de saúde descritas num capítulo que considero um "must", devo confessar que gostaria de ter percebido um pouco mais sobre o que os autores genuinamente pensam, particularmente sobre os cuidados de saúde transfronteiriços, qual o impacto que antevêem para o sistema de saúde português, e os custos que implicam.

A análise das políticas de saúde das governações do PSD e do PS parece-me equilibrada e justa. Recordo, com respeito, como um dos autores deste livro foi imolado por prosseguir com independência o trajecto que ele, como muita gente lúcida, entendem servir melhor o interesse do país. A impaciência com a curteza de vistas de uns tantos exaltados defensores de um modelo social inviável não é disfarçada: "Não será com manifestações de estranhado amor ao SNS que este último se pode desenvolver".

Não resisto, contudo, a revelar que este livro me levou também a uma inesperada conclusão: de facto, a saúde é extraordinariamente resiliente, pois resistiu a tanto zigue-zague, a tanto experimentalismo, a tantos modelos de gestão, a tantos peritos e ideólogos digo isto porque os ganhos que foi registando ao longo destes anos continuaram a acumular-se, impávidos, indiferentes a tanta política e a tanta sabedoria. Só posso interpretar esse progresso pela consistência e dedicação dos seus servidores - médicos, enfermeiros, técnicos, pessoal auxiliar, enfim todos "unsung heroes" do sistema.

Uma nota sobre a reflexão final do livro – onde estaremos daqui a vinte anos? Permito-me ampliar um pouco a profecia dos autores. O "Global Burden of Disease Study" da OMS 2008 diz que em 2030 a primeira causa de morte será a doença isquémica cardíaca, a segunda as doenças cerebrovasculares, e depois a doença pulmonar crónica obstrutiva e as doenças respiratórias. Nada mudou portanto no topo, mas ascenderam ao 5.º lugar os acidentes rodoviários, e depois o cancro do pulmão e a diabetes, tudo patologias em que é possível intervir de forma preventiva.

Concluo com quatro pontos que me parece irão ter um impacto decisivo nos sistemas de saúde, reforçando o que também assinalam autores.

1.º Uma preocupação – o envelhecimento – os problemas médicos que esta população suscita são inúmeros. Ademais 50% das pessoas com mais de 80 anos virão a sofrer de demência.

2.º Uma incerteza – a sustentabilidade do SNS que pode exigir:

– Preservar naturalmente a universalidade da cobertura;

– Procurar novas formas de financiamento;

– Controlar as despesas;

– Aumentar a eficácia da prestação de cuidados;

– Melhorar a qualidade do desempenho.

3. Uma necessidade – a medicina de translação ("from the bench to the bedside") que tem com natural cenário um novo modelo de hospital, que os autores não consideraram no seu texto o Centro Académico de Medicina, que se pode definir como uma constelação de instituições dedicadas a melhorar a saúde dos doentes e das populações, pela conjugação da sua actividade na investigação, educação e cuidados de saúde.

4.º Uma utopia possível – a medicina personalizada cuja sustentação científica nasce da biologia molecular e da genómica que irá requerer, mais do que nunca, equipas de cuidados da saúde.

Mas o maior desafio que é lançado aos sistemas de saúde no futuro é simplesmente este: como compatibilizar os custos de saúde com o direito dos cidadãos aos melhores cuidados. Tem sido difícil criar a ecologia intelectual própria para esta reflexão. Mas não será possível adiá-la até que passe a crise, porque este desafio está no cerne da própria crise. Só que o preço político da racionalidade a que estas matérias obrigam, parece ser para todos que sobre elas se debruçam incluindo, naturalmente os governantes, insuportavelmente caro. E nesse debate, os autores destes livro não podem estar ausentes.

* Este texto foi elaborado para a apresentação do livro "O Percurso da Saúde: Portugal na Europa", de António Correia de Campos Jorge Simões

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