Opinião
Os velhos já não contam?
Portugal e a Europa envelhecem e, segundo as advertências de sociólogos e antropólogos, só a imigração pode salvar as veias esclerosadas de um continente sem tino e com poucos jovens propensos à procriação. O sistema capitalista parece ter urdido a teia do seu próprio esvaziamento. A globalização não resultou; ou, esclarecendo ...
A globalização não resultou; ou, esclarecendo: permitiu a acumulação de fortunas colossais e colocou na miséria mais desesperante milhões daqueles para quem o seu trabalho é insuficiente como garantia de subsistência. O excesso de ganância, a finança a sobrepujar a economia e esta a dominar a política resultaram nesta desorientação.
Mário Soares não se cansa de bater na mesma tecla. E se lermos, com a atenção que ela merece, a dr.ª Teodora Cardoso, entre alguns mais, aperceber-nos-emos de que, assim, as coisas do mundo encaminham-se para a catástrofe. O culto da juventude pela juventude, uma das componentes da ideologia do «mercado», fez rasto a partir da sombria década de 80. O Portugal do dr. Cavaco foi reflexo da Inglaterra de Margaret Tatcher e dos Estados Unidos de Ronald Reagan. O fim da História, como remate de uma era e nascimento de outra, promissora, próspera e feliz, fora «decidido» por um pensador menoríssimo, Fukuyama, no trilho de Milton Friedman. Nada de novo. Apenas o remanejar de teses que agitavam alguma nostalgia dos velhos autoritarismos, apoiados em poderosas empresas, nacionais e multinacionais.
Esta criação de «outro modelo» foi desastrosa. Em Portugal, o aparecimento de um magote de clones uns dos outros fez remover, de lugares importantes, não só a competência e a experiência – como, sobretudo, a memória. Um episódio: por esse tempo, fui redactor-principal de uma revista, «Época», do Grupo Impala. O director era Wilton Fonseca, que possuía uma visão aberta do que deveria ser uma publicação daquele tipo. Um grupo de excelentes jornalistas fora atraído pelo projecto de Wilton.
A certa altura, precisámos de um redactor que percebesse de economia. Fui encarregado de os entrevistar. Com a paciência que a minha tradicional impaciência julgava improvável, lá fui escutando os candidatos, para aí uns dez. Até que me surgiu pela frente, desenvolto, sem medo e sem fadiga, um rapaz cheio de gel, e vestido a preceito: fato cinzento, sapatos pretos envernizados, e botões de punho numa imaculada camisa. Entregou-me um currículo assustador. Pela acumulação de empregos onde já estivera e pela acumulação de erros gramaticais, de sintaxe e de bom senso. Devo dizer aos meus Dilectos que não cultivo a compaixão ante a ignorância nem a condescendência perante a soberba. Antes de começar a entrevista, o moço advertiu: «Quero ganhar seiscentos contos livres de impostos, cartão de crédito, e carro.» Ergui-me, estendi-lhe a mão: «Também eu queria.» O rapaz, que era apenas gel e sapatos pretos envernizados, chegou a director de duas publicações e, mais tarde, foi assessor de ministro. Perdi-lhe o trilho, mas mantive a memória.
«Deixem-nos trabalhar!», o estribilho de propaganda do cavaquismo, expunha a aparente virilidade daquela gente desembaraçada num cartaz onde todos estavam de mangas arregaçadas. O mal dos governos anteriores era diminuído com a promessa de novos tempos. Foi o que se viu. Até hoje não se apurou, com rigor e minúcia, o destino de rios e rios de dinheiro provenientes de Bruxelas. Com aquele dinheirão, até eu, chefe nominal de uma família empobrecida, até eu faria uma figuraça. Cavaco não foi tocado pela sensibilidade social, enquadrando esta palavra na mais ampla da sua definição. Além do que demonstra um atroz conservadorismo, cada vez mais evidente, nestas actuais funções. Transformou o dinheiro em betão, e esqueceu-se, por ignorância cava, a instrução, o apoio à investigação, os cuidados com a velhice. O culto da juventude pela juventude é um culto protofascista. Está nos livros e di-lo a experiência histórica. E as coisas não acontecem por acaso: isto anda tudo ligado, como avisou o poeta Eduardo Guerra Carneiro.
Portugal está cada vez mais velho e a precisar dos imigrados como factores determinantes da sua própria continuidade como nação. O racismo, a xenofobia, o desprezo pelo outro atira-nos para o abismo. É uma imprudência que pagaremos caro. Como a supressão dos velhos constitui a legitimação de uma peculiar violência. Quando um homem de quarenta ou cinquenta anos é atirado para o desemprego; quando uma mulher de trinta ou quarenta é estimulada a «reformar-se», fica obstruído o campo livre da memória e da experiência, em favorecimento daquilo que é absolutamente injustificável. A «renovação de quadros» é uma falácia, destinada, somente, a beneficiar a reduzida lista de gente, para a qual o mundo do trabalho será a execução de uma espécie de desprezo.
APOSTILA – A Imprensa, as televisões e as rádios portuguesas pouco nos informa da realidade política no Cáucaso. Escassamente se sabe do que ocorre no «outro lado.» Chega a ser ultrajante o modo e os estilo como «comentadores do óbvio», referem a trágica situação do que ocorre naquela parte da Europa. Temos de ler jornais estrangeiros (e, mesmo assim, nem todos) para obtermos as informações que nos permitem ajuizar os factos. Talvez seja um pouco pedante da minha parte, que não trago a verdade na mão, mas os Dilectos perdoar-me-ão se lhes assinalar um notabilíssimo artigo, «Moscou-Tbilissi: responsabilités partagées», assinado pelo professor de Oxford, Mark Almond, e publicado na edição de sexta-feira, 22 de Agosto, p.p., de «Le Monde.» É um documento admirável pelo registo pedagógico e pelo esclarecimento que faz da gravíssima questão caucasiana. Começa a ser abjecta a posição unilateral dos jornais portugueses sobre numerosos problemas que, directa ou indirectamente, afectam todos nós.
Mário Soares não se cansa de bater na mesma tecla. E se lermos, com a atenção que ela merece, a dr.ª Teodora Cardoso, entre alguns mais, aperceber-nos-emos de que, assim, as coisas do mundo encaminham-se para a catástrofe. O culto da juventude pela juventude, uma das componentes da ideologia do «mercado», fez rasto a partir da sombria década de 80. O Portugal do dr. Cavaco foi reflexo da Inglaterra de Margaret Tatcher e dos Estados Unidos de Ronald Reagan. O fim da História, como remate de uma era e nascimento de outra, promissora, próspera e feliz, fora «decidido» por um pensador menoríssimo, Fukuyama, no trilho de Milton Friedman. Nada de novo. Apenas o remanejar de teses que agitavam alguma nostalgia dos velhos autoritarismos, apoiados em poderosas empresas, nacionais e multinacionais.
A certa altura, precisámos de um redactor que percebesse de economia. Fui encarregado de os entrevistar. Com a paciência que a minha tradicional impaciência julgava improvável, lá fui escutando os candidatos, para aí uns dez. Até que me surgiu pela frente, desenvolto, sem medo e sem fadiga, um rapaz cheio de gel, e vestido a preceito: fato cinzento, sapatos pretos envernizados, e botões de punho numa imaculada camisa. Entregou-me um currículo assustador. Pela acumulação de empregos onde já estivera e pela acumulação de erros gramaticais, de sintaxe e de bom senso. Devo dizer aos meus Dilectos que não cultivo a compaixão ante a ignorância nem a condescendência perante a soberba. Antes de começar a entrevista, o moço advertiu: «Quero ganhar seiscentos contos livres de impostos, cartão de crédito, e carro.» Ergui-me, estendi-lhe a mão: «Também eu queria.» O rapaz, que era apenas gel e sapatos pretos envernizados, chegou a director de duas publicações e, mais tarde, foi assessor de ministro. Perdi-lhe o trilho, mas mantive a memória.
«Deixem-nos trabalhar!», o estribilho de propaganda do cavaquismo, expunha a aparente virilidade daquela gente desembaraçada num cartaz onde todos estavam de mangas arregaçadas. O mal dos governos anteriores era diminuído com a promessa de novos tempos. Foi o que se viu. Até hoje não se apurou, com rigor e minúcia, o destino de rios e rios de dinheiro provenientes de Bruxelas. Com aquele dinheirão, até eu, chefe nominal de uma família empobrecida, até eu faria uma figuraça. Cavaco não foi tocado pela sensibilidade social, enquadrando esta palavra na mais ampla da sua definição. Além do que demonstra um atroz conservadorismo, cada vez mais evidente, nestas actuais funções. Transformou o dinheiro em betão, e esqueceu-se, por ignorância cava, a instrução, o apoio à investigação, os cuidados com a velhice. O culto da juventude pela juventude é um culto protofascista. Está nos livros e di-lo a experiência histórica. E as coisas não acontecem por acaso: isto anda tudo ligado, como avisou o poeta Eduardo Guerra Carneiro.
Portugal está cada vez mais velho e a precisar dos imigrados como factores determinantes da sua própria continuidade como nação. O racismo, a xenofobia, o desprezo pelo outro atira-nos para o abismo. É uma imprudência que pagaremos caro. Como a supressão dos velhos constitui a legitimação de uma peculiar violência. Quando um homem de quarenta ou cinquenta anos é atirado para o desemprego; quando uma mulher de trinta ou quarenta é estimulada a «reformar-se», fica obstruído o campo livre da memória e da experiência, em favorecimento daquilo que é absolutamente injustificável. A «renovação de quadros» é uma falácia, destinada, somente, a beneficiar a reduzida lista de gente, para a qual o mundo do trabalho será a execução de uma espécie de desprezo.
APOSTILA – A Imprensa, as televisões e as rádios portuguesas pouco nos informa da realidade política no Cáucaso. Escassamente se sabe do que ocorre no «outro lado.» Chega a ser ultrajante o modo e os estilo como «comentadores do óbvio», referem a trágica situação do que ocorre naquela parte da Europa. Temos de ler jornais estrangeiros (e, mesmo assim, nem todos) para obtermos as informações que nos permitem ajuizar os factos. Talvez seja um pouco pedante da minha parte, que não trago a verdade na mão, mas os Dilectos perdoar-me-ão se lhes assinalar um notabilíssimo artigo, «Moscou-Tbilissi: responsabilités partagées», assinado pelo professor de Oxford, Mark Almond, e publicado na edição de sexta-feira, 22 de Agosto, p.p., de «Le Monde.» É um documento admirável pelo registo pedagógico e pelo esclarecimento que faz da gravíssima questão caucasiana. Começa a ser abjecta a posição unilateral dos jornais portugueses sobre numerosos problemas que, directa ou indirectamente, afectam todos nós.
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