Opinião
Os dois capitalismos e a cafrealização dos costumes
Os empresários e gestores que se acham no direito de usar sem entraves o poder de que desfrutam estão a contribuir para a cafrealização dos costumes.
Os empresários e gestores que se acham no direito de usar sem entraves o poder de que desfrutam estão a contribuir para a cafrealização dos costumes. "Se tens poder, usa-o": é este o conselho que nos dão. Ora a civilização consiste na contenção do poder, incluindo, como elemento essencial, a auto-contenção
A mudança para a Holanda do domicílio fiscal da sociedade familiar que controla a Jerónimo Martins foi muito criticada por sugerir uma quebra de solidariedade com o país num momento de crise em que se apela à partilha do sofrimento entre todos.
Em resposta, houve quem louvasse a sua racionalidade e oportunidade tendo em conta a responsabilidade que qualquer empresa tem de assegurar a sua sobrevivência e crescimento. Sem lucros não há postos de trabalho nem investimento, disse-se; logo, os empresários têm não só o direito como o dever de buscar, se necessário no estrangeiro, as condições fiscais mais favoráveis para os seus accionistas.
Fez impressão que, no contexto de um debate acalorado mas razoável, o patriarca da família viesse a público dizer coisas como: "tenho o direito de defender o meu património"; "o português não gosta da iniciativa privada"; "não aceito ataques pessoais"; e "no parlamento continua a insultar-se a iniciativa privada". Mas o que verdadeiramente nos interessa é esta sua afirmação: "a minha responsabilidade é gerir o dinheiro dos accionistas". Só?
Os manuais de microeconomia pretendem que o propósito de uma empresa é a maximização do lucro e Milton Friedman inferiu daí que nenhuma outra responsabilidade social deve ser exigida ao empresário. Ambas as teses são erradas. Nenhum gestor sabe o que, em termos práticos, poderá significar a exigência da maximização do lucro, muito menos como alcançá-la. Além disso, Jim Collins demonstrou em "Built to Last" que, paradoxalmente, as empresas verdadeiramente excecionais atribuem uma baixa prioridade à rentabilidade, a qual se revela, na prática, um resultado colateral de uma série de coisas que podemos sinteticamente designar como paixão pela excelência estribada numa sólida visão de negócio.
Peter Drucker, o fundador da disciplina da gestão, para quem o lucro não era "a explicação, a causa ou a justificação das decisões de negócios, mas o teste da sua validade", não teria ficado surpreendido com essa conclusão. É isto, diga-se de passagem, que se ensina nas grandes "business schools" cujos rankings excitam tanta gente.
Naturalmente, nem todas as empresas seguem a via indicada. Há um capitalismo que assenta a sua prosperidade na conceção de bens e serviços inovadores ou na invenção de processos mais eficientes (logo, mais económicos) de produção e distribuição, dedicando-se à destruição criadora de que falava Schumpeter. Mas também há outro que trata apenas de explorar o poder negocial resultante de barreiras à entrada, do acesso preferencial a matérias-primas, da protecção política ou da fortuna do paizinho, beneficiando de rendas de situação que lhe permitem cobrar alguma espécie de portagem.
Percebe-se que o segundo modelo fixe preferencialmente as suas atenções no lucro, porque, em empresas que exigem menos competências distintivas, fazer dinheiro será porventura a actividade mais desafiadora. Já quem gere uma empresa inovadora terá muito mais coisas interessantes com que se entreter.
Para o público, o capitalismo obcecado com o lucro é por vezes inevitável; mas só aquele que contribui para a melhoria do bem-estar colectivo é desejável. O primeiro será um mal menor; o segundo, um bem maior. O primeiro é um problema dos seus acionistas; o segundo, um ativo para todos nós. Com o primeiro mantemos uma relação interesseira; com o segundo, uma relação interessada. Entendemos que o progresso do país depende de reduzirmos o poder de influência de empresas do primeiro tipo e de conseguirmos ter mais do segundo.
A doutrina que concede toda a prioridade ao lucro não é uma teoria empiricamente sustentada, apenas uma prescrição que visa justificar a total subordinação da gestão empresarial aos interesses dos acionistas em detrimento de todas as restantes partes envolvidas, incluindo trabalhadores, clientes, parceiros, fornecedores, comunidade local e comunidade nacional.
Os empresários e gestores que se acham no direito de usar sem entraves o poder de que desfrutam estão a contribuir para a cafrealização dos costumes. "Se tens poder, usa-o": é este o conselho que nos dão. Ora a civilização consiste na contenção do poder, incluindo, como elemento essencial, a auto-contenção. Inversamente, quem entende que o poder sobreleva quaisquer outras considerações coloca-se "ipso facto" do lado da força bruta.
Cheira-me que não agradará muito àqueles que hoje tudo podem o que um dia poderão vir a poder aqueles que, de momento, nada podem.
A mudança para a Holanda do domicílio fiscal da sociedade familiar que controla a Jerónimo Martins foi muito criticada por sugerir uma quebra de solidariedade com o país num momento de crise em que se apela à partilha do sofrimento entre todos.
Fez impressão que, no contexto de um debate acalorado mas razoável, o patriarca da família viesse a público dizer coisas como: "tenho o direito de defender o meu património"; "o português não gosta da iniciativa privada"; "não aceito ataques pessoais"; e "no parlamento continua a insultar-se a iniciativa privada". Mas o que verdadeiramente nos interessa é esta sua afirmação: "a minha responsabilidade é gerir o dinheiro dos accionistas". Só?
Os manuais de microeconomia pretendem que o propósito de uma empresa é a maximização do lucro e Milton Friedman inferiu daí que nenhuma outra responsabilidade social deve ser exigida ao empresário. Ambas as teses são erradas. Nenhum gestor sabe o que, em termos práticos, poderá significar a exigência da maximização do lucro, muito menos como alcançá-la. Além disso, Jim Collins demonstrou em "Built to Last" que, paradoxalmente, as empresas verdadeiramente excecionais atribuem uma baixa prioridade à rentabilidade, a qual se revela, na prática, um resultado colateral de uma série de coisas que podemos sinteticamente designar como paixão pela excelência estribada numa sólida visão de negócio.
Peter Drucker, o fundador da disciplina da gestão, para quem o lucro não era "a explicação, a causa ou a justificação das decisões de negócios, mas o teste da sua validade", não teria ficado surpreendido com essa conclusão. É isto, diga-se de passagem, que se ensina nas grandes "business schools" cujos rankings excitam tanta gente.
Naturalmente, nem todas as empresas seguem a via indicada. Há um capitalismo que assenta a sua prosperidade na conceção de bens e serviços inovadores ou na invenção de processos mais eficientes (logo, mais económicos) de produção e distribuição, dedicando-se à destruição criadora de que falava Schumpeter. Mas também há outro que trata apenas de explorar o poder negocial resultante de barreiras à entrada, do acesso preferencial a matérias-primas, da protecção política ou da fortuna do paizinho, beneficiando de rendas de situação que lhe permitem cobrar alguma espécie de portagem.
Percebe-se que o segundo modelo fixe preferencialmente as suas atenções no lucro, porque, em empresas que exigem menos competências distintivas, fazer dinheiro será porventura a actividade mais desafiadora. Já quem gere uma empresa inovadora terá muito mais coisas interessantes com que se entreter.
Para o público, o capitalismo obcecado com o lucro é por vezes inevitável; mas só aquele que contribui para a melhoria do bem-estar colectivo é desejável. O primeiro será um mal menor; o segundo, um bem maior. O primeiro é um problema dos seus acionistas; o segundo, um ativo para todos nós. Com o primeiro mantemos uma relação interesseira; com o segundo, uma relação interessada. Entendemos que o progresso do país depende de reduzirmos o poder de influência de empresas do primeiro tipo e de conseguirmos ter mais do segundo.
A doutrina que concede toda a prioridade ao lucro não é uma teoria empiricamente sustentada, apenas uma prescrição que visa justificar a total subordinação da gestão empresarial aos interesses dos acionistas em detrimento de todas as restantes partes envolvidas, incluindo trabalhadores, clientes, parceiros, fornecedores, comunidade local e comunidade nacional.
Os empresários e gestores que se acham no direito de usar sem entraves o poder de que desfrutam estão a contribuir para a cafrealização dos costumes. "Se tens poder, usa-o": é este o conselho que nos dão. Ora a civilização consiste na contenção do poder, incluindo, como elemento essencial, a auto-contenção. Inversamente, quem entende que o poder sobreleva quaisquer outras considerações coloca-se "ipso facto" do lado da força bruta.
Cheira-me que não agradará muito àqueles que hoje tudo podem o que um dia poderão vir a poder aqueles que, de momento, nada podem.
Director-geral da Ology e docente universitário
jpcastro@ology.pt
Assina esta coluna quinzenalmente à terça-feira
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