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Opinião
05 de Março de 2013 às 00:01

Um grande salto em frente, dois grandes saltos atrás

Se o voto popular se tornou irrelevante para escolher entre políticas distintas, porque não eleger alguém que ao menos lance o pânico entre os poderosos que comandam a UE, o BCE e o FMI? – assim parece ter raciocinado na passada semana o eleitorado italiano.

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Quem quer que hoje se esforce por ver além da espuma dos dias, não só entende que o défice democrático europeu se foi alargando até originar esta espécie de pós-democracia em que hoje vivemos, como reconhece que cada vez mais cidadãos já desvendaram este segredo e se decidiram por agir em conformidade. 


Tornou-se também claro para muitos que, na crise das dívidas soberanas desencadeada em 2010, o pretexto foi económico-financeiro, mas o intuito é político. O que a justifica é o desejo de aproveitar um momento de fragilidade dos povos e dos estados nacionais para desencadear um muito ansiado ajuste de contas, pondo em causa tanto o contrato social laboriosamente edificado ao longo de décadas como os delicados equilíbrios sobre os quais ele assenta.

A austeridade fiscal foi imposta a coberto de um pânico irracional fabricado pelo BCE com pretextos espúrios. Apesar do evidente descalabro, tanto a UE como o BCE insistem em políticas de extorsão fiscal que prolongam indefinidamente a estagnação e o desemprego de longa duração, assim condenando, nas palavras de Martin Wolf, "dezenas de milhões a um sofrimento desnecessário".

Os mais crédulos aceitam que em devido tempo tudo se arranjará, contanto que cada país se esforce por pôr as suas contas em ordem. Basta-lhes a ténue promessa de que, após as eleições alemãs deste ano, a Europa avançará decididamente para a união bancária, a união fiscal e, a prazo, a mutualização parcial da dívida. Mas convém recordar que este método de começar a construir a casa pelo telhado, deixando para o fim os seus alicerces democráticos, é o mesmo que foi adoptado vai para mais de duas décadas, com os desastrosos resultados que conhecemos. É chegada a altura de dizermos com clareza que este "federalismo" burocrático equivale à total subversão do ideal europeu tal como nos foi proposto em sucessivas ocasiões e que, como tal, deve ser liminarmente recusado.

É também este o momento de desmontar a retórica das "reformas estruturais" que a Comissão Europeia e o BCE se acham no direito de impor a todo o continente, sem que para isso disponham de qualquer mandato. Para começar, não se sabe sequer muito bem o que sejam essas famigeradas "reformas" – uma espécie de fato para marrecos à escala continental – excepto que se traduzem sempre em pacotes de sevícias sem propósito evidente além de uma vaga e nunca alcançada melhoria da "competitividade" (ela própria outra palavra de sentido indeterminado). Conforme recentemente vincou Wolfgang Munchau, "não existe qualquer elo" entre "uma vaga ideia de reforma e o sucesso económico, medido pelo PIB per capita".

Naturalmente, seria preferível que a solução política para esta crise emergisse das presentes instituições europeias. Quaisquer embaraços decorrentes do eventual chumbo pelo Parlamento Europeu do orçamento comunitário proposto pela Comissão seriam mais do que compensados pela constatação popular de que, afinal, o seu voto sempre serve para alguma coisa. Precisamos urgentemente de que o Parlamento – por excelência, a casa da democracia europeia – se afirme como um pólo de poder alternativo, e esta seria a hora de ele se redimir da sua anterior passividade. Falhando – como parece provável – essa alternativa, restaria a hipótese de o Tribunal Europeu de Justiça se decidir a travar a continuada subversão das instituições comunitárias declarando a nulidade de todas as decisões impostas nos últimos anos pela Alemanha e pela Comissão como contrárias à letra e ao espírito dos tratados em vigor. Mas é pouco provável que isso aconteça.

Não podemos, por isso, pôr de parte a hipótese de se acentuar na União Europeia a presente deriva de degradação da convivência civilizada entre os povos e de liquidação definitiva de qualquer conceito de futuro mobilizador para os seus cidadãos. É por tudo isso que nós, os bons Europeus –, ou seja, aqueles que concebem a Europa antes de mais como um projecto de civilização – temos de reconhecer que, a persistir o curso actual, talvez seja necessário que ao grande salto em frente da criação da moeda única possam ter de seguir-se dois grandes saltos atrás, ou seja, não só o desmantelamento dessa moeda única como a anulação de uma parte das regras do Mercado Único que a precedeu.

Não há uma só maneira de os povos europeus conviverem e cooperarem entre si em razoável harmonia. Nos quase três milénios que leva de existência como instância geopolítica relevante, a Europa conheceu já múltiplas configurações, alternando períodos de aproximação entre os estados constituintes com outros de afastamento. Num horizonte longo, a presente UE deve ser encarada como apenas um dos arranjos institucionais possíveis, cuja principal carta de recomendação foi a sua orientação demo-liberal. Falhando essa inspiração distintiva, não há razão para que seja considerada preferível a arranjos mais estreitos, no limite pouco mais que zonas de comércio livre e cooperação política limitada.

Nós, os bons Europeus, deveremos por isso prepararmo-nos para reconsiderar radicalmente a posição de Portugal no contexto da Europa, quem sabe se começando por dar à expressão "países periféricos" um sentido positivo. Com tanto país a ser deitado fora da UE como carga imprestável, talvez se consiga fazer algumas alianças interessantes, deixando a Alemanha entretida com os seus estados tributários.

Director-geral da Ology e docente universitário

jpcastro@ology.pt

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